O que será dos animais domésticos num mundo vegano – Parte 1

Sérgio Greif *

O veganismo é o estilo de vida resultante da oposição prática a toda forma de exploração animal, não apenas na alimentação, como também no vestuário, no entretenimento, no teste de produtos, no trabalho, etc.

Por conseguinte, o veganismo opõe-se à própria criação animal.

Entendemos por criação animal a reprodução de linhagens de animais que atendem a um ou mais interesses do ser humano. Geralmente as espécies domesticadas derivam de formas selvagens selecionadas por expressarem determinadas características vistas como de interesse e cuja procriação seletiva ao longo dos anos ou manipulação genética selecionaram essas características de forma a potenciá-las.

Dessa forma, a maior parte dos animais “de criação” são organismos selecionados pelo homem para serem explorados, e diferem significativamente de suas formas selvagens. Ainda, a maior parte desses animais, com a seleção de características favoráveis à sua exploração, acabaram por perder características selvagens que tornavam-nos aptos a sobreviver em seu ambiente natural. De maneira resumida, a maior parte dos animais domésticos desenvolveu uma dependência do ser humano, especialmente no que diz respeito à sua sobrevivência.

Nos casos em que essas características não comprometem a sobrevivência do animal no ambiente natural, a introdução (ou reintrodução) desses pode vir a comprometer as formas selvagens da espécie, à medida que domesticados e selvagens passam a competir entre si, ou pior, passam a cruzar entre si, comprometendo o perfil genético da forma selvagem.

Portanto, a opção de “libertação animal” para espécies domésticas que envolve sua soltura em um ambiente selvagem na maioria das vezes não fará sentido, pelas próprias características dos animais envolvidos ou do ecossistema. A introdução de animais em ambientes naturais só deve ser feita quando seu perfil genético condiz com o das populações do campo e quando um trabalho de reabilitação é feito, de forma a possibilitar sua sobrevivência sem a interferência do ser humano. Não é o caso quando tratamos de linhagens de animais domésticos, selecionados para produzir.

Para exemplificar, vamos supor o caso do gado bovino. O gado hoje existente difere significativamente das formas selvagens originalmente capturadas por nossos antepassados em 7.000 A.E.C., na Ásia. Bois e vacas foram, ao longo dos tempos, selecionados para fornecer mais carne e menos carcaça, mais leite, couro de qualidade, animais mais mansos que facilitassem o manejo e robustos o suficiente para serem utilizados como animais de tração ou para outros trabalhos. Toda essa seleção resultou que, atualmente, existem mais de 1.000 raças de bovinos, todas adaptadas a uma determinada região e com características produtivas que atendem a um determinado interesse.

Toda essa seleção, porém, tornou esses animais menos aptos à sobrevivência sem os cuidados do ser humano. Bovinos tornaram-se animais pouco ágeis, pesados, muito distintos dos ruminantes não domesticados. Para um predador de topo, uma vaca é um alvo praticamente imóvel. Libertar bovinos nos campos, em locais onde existam predadores, é condená-los à morte certa, pois por 9.000 anos esses animais contaram com a proteção do ser humano e não se pode esperar que sobrevivam repentinamente sem essa proteção.

De maneira oposta, poder-se-ia pensar na libertação de bovinos em locais onde não existam predadores. Essa situação já existe, de certa forma, quando pensamos na pecuária extensiva, em regiões onde o criador pouco precisa fazer para proteger seu rebanho. No entanto, nesse caso, o próprio ser humano trabalha como um predador, recolhendo o gado de tempos e tempos e mandando-o para o matadouro, regulando assim o tamanho de sua população.

Em uma situação hipotética onde todos os seres humanos tornam-se veganos, apenas abandonando o gado nos campos, os bovinos e outros animais domésticos que vivessem em áreas onde não existem predadores iriam se reproduzir indefinidamente, degradando ainda mais os ambientes naturais e interferindo com outras formas de vida.

Não há como defender que essas populações acabariam por atingir um equilíbrio com seu ambiente porque qualquer acomodação a um ecossistema implicaria no deslocamento de outras espécies, na alteração de seu funcionamento. Bois podem estar vivendo na região do Pantanal e da Amazônia, mas apenas porque esses ambientes foram modificados para suportá-los. Pelo ponto de vista do Pantanal ou da Amazônia, muito melhor seria não haver ali animais domésticos. Dessa forma os ambientes tenderiam naturalmente a voltar ao que eram antes.

Creio que o gado bovino exemplifique bem o que acontece com outros animais chamados “de fazenda” — cavalos, ovelhas, cabras, galinhas, porcos, etc. Esses animais dependeram do ser humano por milhares de anos para sobreviver e se reproduzir, e sua manutenção dependerá, para sempre, da interferência do ser humano. Sua introdução em ambientes selvagens compromete sua própria sobrevivência ou a sobrevivência de outras espécies existentes nesses ecossistemas.

Além disso, podemos nos questionar sobre o porquê de, em um “mundo vegano”, mantermos espécies desenvolvidas pelo ser humano com a única finalidade de exploração. Pode-se entender que haja uma preocupação em evitar a extinção de espécies selvagens, afinal, cada espécie está inserida em um contexto ambiental e desempenha determinada função dentro de um ecossistema. Romper um elo nessa corrente pode significar a extinção de outras espécies e o comprometimento do próprio ecossistema.

Mas, no caso de espécies domésticas, vemos que a extinção não significa uma perda, pois essas espécies não representam nenhum elo positivo para a funcionalidade dos ecossistemas, pelo contrário, são invasoras. Além disso, não há lógica em se pensar na “perda de biodiversidade” quando a existência de apenas 3 espécies de ruminantes domésticas (o boi, a ovelha e a cabra), por exemplo, compromete a sobrevivência de mais de 160 espécies de ruminantes selvagens, além de infinitas outras formas de vida.

Cada boi, cada ovelha, cada cabra, cada animal doméstico deve gozar de direitos enquanto indivíduos, mas realmente não devemos nos preocupar com a “preservação da espécie” desse indivíduo. Levar ou permitir a extinção de determinada espécie/raça animal não significa ir contra os interesses desses animais enquanto indivíduos.

Os interesses de indivíduos animais, enquanto organismo senciente, limitam-se basicamente a levar vidas condizentes com sua natureza, buscando o conforto e fugindo ao desconforto. Acima de tudo, animais tem interesse na continuidade de sua própria vida. Bois ou galinhas não estão preocupados se dali a 100 ou 200 anos sua raça continuará existindo, e tanto faz para eles se atualmente existem 1 bilhão ou apenas 10 indivíduos de sua espécie. Isso simplesmente não faz parte de seus interesses particulares, mas sim do interesse de seres humanos preocupados com sua exploração.


*Sérgio Greif é biólogo, mestre e ativista pelos direitos animais.
http://www.anda.jor.br/2009/06/10/o-que-sera-dos-animais-domesticos-em-um-mundo-vegano/


O que será dos animais domésticos num mundo vegano – Parte 2

 

De que forma o veganismo levará as espécies domésticas à extinção

Pode parecer uma situação que depõe contra o veganismo o fato de que seu advento implicará na extinção de espécies animais, mas isso apenas quando analisamos a situação pelo ponto de vista do ser humano educado no sistema de crença antropocentrista.

As variedades de animais que serão extintas com o veganismo não contribuem para a biodiversidade em seu estrito senso. Pelo contrário, sua existência contrapõe a existência de outras formas de vida, essas sim capazes de uma vida independente do jugo humano. Além disso, dar continuidade a essas formas de existência é condená-las eternamente à dependência da boa vontade humana. Dessa forma, a extinção parece ser uma opção desejável por todos os pontos de vista, exceto daqueles que objetivam sua exploração.

O cenário mais provável é que as pessoas não se tornem veganas da noite para o dia. Assim, podemos entender que as populações de animais domésticos declinem “naturalmente”, pelas próprias forças do mercado. Em um mundo tendente ao veganismo, os criadores de animais e os funcionários que atualmente atuam em algum nível dessa cadeia produtiva teriam gradativamente de procurar por atividades mais promissoras. Quando diminui a demanda, diminui a oferta.

Em um cenário bem menos provável, mas apenas para considerar todas as hipóteses, suponhamos que amanhã a humanidade toda perdesse o interesse na criação de animais. De uma hora para a outra “perderiam a serventia” 1,3 bilhão de bois e vacas, 1 bilhão de ovelhas e carneiros, 700 milhões de cabras e bodes, 930 milhões de porcos, 110 milhões de equinos e 18 milhões de frangos e galinhas, entre outros tantos animais.

Certamente a forma mais rápida para se livrar de bilhões de “animais indesejáveis” seria também a mais truculenta e sádica: o extermínio em massa, a incineração, a vala comum. Presenciamos essa cena em eventos de epidemias zoonóticas e ela seria também possível no caso dessa perda repentina de interesse pelos produtos de origem se dar por uma súbita revelação no contexto da saúde, ecológica, etc. Mas supondo que esse súbito vegetarianismo tivesse motivos éticos, esse extermínio não seria uma alternativa viável.

Abandonar os animais nas fazendas à própria sorte também não seria uma alternativa justa, pois esses animais são frutos de nossas atividades e teríamos responsabilidades morais para com eles. Em fazendas abandonadas esses animais morreriam à mingua, de fome, de doenças ou indefesos, atacados por predadores. Nos raros casos em que sua sobrevivência fosse viável, que esses animais pudessem se alimentar e se defender de predadores, o ônus ficaria para o ambiente, na forma de interações interespecíficas desarmônicas, transmissão de doenças para espécies silvestres, degradação ambiental, etc. De uma ou de outra forma, simplesmente abandonar as fazendas cheias de animais seria um ato de irresponsabilidade para com a vida e o meio ambiente.

Supondo esse cenário, bastante improvável, da perda repentina de interesse em bilhões de animais domésticos, por um ganho súbito de consciência ética, o que acredito que aconteceria é que seres humanos voluntários se encarregariam de manter esses animais nas fazendas, alimentados e afastados de predadores. As fazendas, assim, se transformariam em santuários de animais.

Porém, torna-se difícil crer que uma confraria de voluntários se prontificaria a diariamente alimentar animais, limpar seus recintos e manter seus predadores afastados apenas para evitar que sua espécie fosse extinta, porque esse é por si um trabalho sem objetivo final.

Diferente dos santuários de animais silvestres, onde animais recuperados são colocados para se reproduzir e, se possível, serem reintroduzidos em campo (o objetivo final é reintroduzir o animal em campo), santuários de animais domésticos devem se destinar a garantir a sobrevivência de animais já nascidos, sem no entanto permitir sua reprodução ou acesso a áreas selvagens (o objetivo, nesse caso, é garantir a melhor vida possível para esses animais, e a morte o mais tardia possível).

Está claro que à medida que esses animais fossem morrendo — de morte natural — os campos antes por eles ocupados ou destinados a produzir alimentos para seu sustento estariam liberados para produzir alimentos para o ser humano, ou melhor ainda, para permitir que a sucessão ecológica restabelecesse na área degradada os ecossistemas naturais, voltando ao local as espécies animais e vegetais originais. A vida dessa forma não sucumbiria, mas floresceria.

Sérgio Greif é biólogo, mestre e ativista pelos direitos animais.

http://www.anda.jor.br/2009/06/10/o-que-sera-dos-animais-domesticos-em-um-mundo-vegano-parte-2/


O que será dos animais domésticos num mundo vegano – Parte 3

Liberdade de reprodução e o viés da ecologia rasa?

Pode-se pensar que privar animais da possibilidade de produzir uma prole constitua-se, por si só, uma forma de crueldade, mas essa é uma análise bastante superficial da situação. Para compreender o porquê disso podemos analisar o caso dos animais ditos “de estimação”. As pessoas mantém em suas casas cães e gatos, mas quando não há controle sobre sua reprodução, animais acabam sendo abandonados, submetidos a maus tratos e ao sistema de controle de animais errantes que geralmente envolve a morte.

Por isso a castração e a esterilização em massa são vistas como formas éticas de manter a população de cães e gatos em níveis considerados aceitáveis pelos órgãos de saúde. As esterilizações já acontecem e não há questionamento em relação ao seu estado moral. É fato que matar animais em Centros de Controle de Zoonoses é muitas vezes pior. E não há como defender, eticamente, que o controle da reprodução priva os filhotes do direito de nascer, porque não se pode defender os direitos de um ente que ainda nem foi concebido.

E embora esse sistema, da forma como se encontra, não vise a esterilização de todos os cães e gatos, permitindo a reprodução de alguns indivíduos e garantindo a satisfação da demanda humana por animais de estimação, o controle é feito. De toda forma alguns animais são impedidos de se reproduzir.

Mesmo que esses animais não sejam castrados, o próprio fato de estarem contidos já é fator limitante para o cumprimento de seus impulsos naturais. E qualquer ser humano que descuide desse aspecto do cuidado do animal de sua família deve ser visto como um irresponsável, pois uma vez que os filhotes nasçam é difícil providenciar-lhes um lar adequado. Chamamos a esse controle “posse responsável”, embora em um mundo ideal a ideia de ‘posse’ de um animal devesse ser substituída pela ideia de tutela.

Portanto, a libertação animal, quando tratando de animais selecionados geneticamente pelo homem, trata sem duvida de uma “liberdade relativa”, pois no que concerne aos aspectos de reprodução e à liberdade de ir e vir, esses animais precisarão ser sempre controlados.

Nessas antigas fazendas, agora santuários, animais poderiam correr pelos campos, fuçar a terra, cavar, cobrir-se de lamas e esfregar-se nas árvores, levar vidas condizentes com sua natureza. Mas de forma alguma eles deveriam poder transpor os limites dessas áreas a eles destinadas. Eles poderiam engordar sem correr o risco de serem abatidos e emagrecer sem correr o risco de serem descartados, levariam vidas plenas e viveriam o tempo de sua longevidade natural, mas em um mundo ideal essa seria sua última geração.3

Pode parecer radicalismo falar em “última geração” quando mantemos uma estrutura de pensamento harmonizada com o conceito de ecologia rasa, onde tudo é analisado pela perspectiva do ser humano. De acordo com esse conceito, o cerrado não tem valor em si mesmo. O cerrado tem valor à medida que nele encontram-se recursos, conhecidos ou potenciais, que poderão de alguma forma trazer benefícios para o ser humano. Fomos educados a perceber a biodiversidade como uma fonte de recursos e associamos o conceito de preservação a essa percepção de mundo.

Em ecologia rasa não cabe a ideia de extinção de uma espécie que serve ao homem, e menos ainda o conceito de extinção voluntária humana, porque o objetivo da existência do mundo é o próprio homem e pensar isso parece tornar o mundo sem sentido. Mas quando se analisa a posição das espécies domésticas e do próprio homem no ambiente natural, pelo ponto de vista da natureza, falar-se em extinção começa a fazer todo o sentido.

Para a ecologia rasa o indivíduo animal não tem valor intrínseco. Ele vale o quanto sua carga genética pode contribuir para a preservação de sua espécie, o recurso conhecido ou potencial que beneficia o ser humano. Assim, a vida de animais pertencentes a espécies abundantes não tem praticamente valor, enquanto que a vida de animais pertencentes a espécies raras vale mais. A vida tem valor no conjunto da espécie, não no âmbito do indivíduo, e seu valor está diretamente relacionado ao quanto ela pode oferecer para o futuro do ser humano.

Pensar animais domésticos emancipados no âmbito da biodiversidade é, de certa forma, dar continuidade ao seu processo de exploração, porque nada, senão sua exploração, dá sentido à sua existência. Em nenhum outro aspecto, senão na perspectiva de exploração humana, esses animais se encaixam no conceito de diversidade, pois essas variedades não existiam antes da seleção realizada pelo ser humano e eles jamais virão a fazer parte de nenhum ambiente natural. Portanto, não são “formas de vida” cuja espécie deva ser poupada da extinção. Essas variedades são, e sempre serão, dependentes do ser humano para sua sobrevivência.

Portanto, permitir a procriação desses animais significaria necessitar manter, indefinidamente, santuários de animais, com seres humanos voluntários para sempre cuidando de sua alimentação e proteção. E com as necessidade de alimentação e proteção fornecidas, sem o controle da população, 1 bilhão não tardaria a se tornar um trilhão. Os santuários, e não mais as fazendas, se tornariam responsáveis pela degradação ambiental e pelo aquecimento global.
No cenário do santuário onde os animais gozam de uma relativa liberdade, sendo seu limite a reprodução, a situação não se manteria por muitos anos — 20 ou 30 anos talvez — o tempo de vida do animal mais longevo.

Uma possível degeneração humana

Adicionalmente, manter “estoques” ou bancos genéticos de animais domésticos traria o grande risco de sujeitar uma futura prole ao que podemos chamar de “flutuação cultural do ser humano”. Pois não há nenhuma garantia de que o advento do veganismo persistiria por muito tempo, por mais que educássemos nossos filhos. Das religiões aos movimentos políticos e sociais, temos muitos exemplos que demonstram que as idéias tendem a perder força ou se corromper ao longo do tempo.

Em poucas gerações, aquela cultura vegana fervorosa e fortemente enraizada poderia vacilar e então, esses animais domésticos ali disponíveis poderiam servir de estímulo à degeneração e ao retrocesso do gênero humano. Essa nova geração poderia vir a se perguntar, 100 ou 200 anos após o advento do veganismo, porque que os seres humanos estão “servindo” animais em santuários ao invés de colocar animais para servi-los?

Preservando esse perfil genético propício ao fornecimento desses “recursos”, apenas pelo capricho de não permitir sua extinção, estar-se-ia criando uma situação favorável ao retorno ao seu sistema exploratório, simplesmente porque uma nova geração de pessoas se questionaria se abolir a exploração de tal fonte de recursos não seria um desperdício.

Pelo contrário, a extinção dos animais domésticos dificultaria esse processo de degeneração, pois esses “recursos” não estariam facilmente disponíveis e, para recriar um sistema de exploração, depender-se-ia de uma nova seleção de características desejáveis a partir de formas selvagens ou da clonagem de animais domésticos a partir de fragmentos de tecidos ainda viáveis, manipulação genética e outras tecnológicas por si só desencorajadoras.

Uma vez estabelecido esse novo sistema vegano, a extinção das espécies domésticas em 20-30 anos garantiria sua continuidade, pois tudo o que as futuras gerações conheceriam seria o veganismo, sem possibilidade de retorno à condição anterior.

Sérgio Greif é biólogo, mestre e ativista pelos direitos animais. http://www.anda.jor.br/2009/06/10/3839  


 

 

O que será dos animais domésticos num mundo vegano – Parte 4

 

Sobre os chamados “animais de estimação”

Cães e gatos, bem como outros animais ditos de estimação, gozam de um status diferenciado em nossa sociedade. As explicações psicológicas e antropológicas para esse fenômeno são muitas e não serão debatidas aqui. Restringiremos a discussão aos aspectos referentes às vantagens dessa interação.

A manutenção de animais como animais de estimação pode resultar em interações positivas ou negativas. É claro que se analisarmos apenas pelo ponto de vista do ser humano essa interação será quase sempre positiva, mesmo porque quando ela se torna inconveniente a tendência é se desfazer do animal. Portanto, a análise da interação entre homens e animais de estimação deve ser feita pelo ponto de vista do animal.

O homem adota como animais de estimação animais domésticos, silvestres ou exóticos. Outros artigos já discutiram a domesticação de animais silvestres e exóticos, eles são unânimes em esclarecer que, pelo ponto de vista do animal, a vida em liberdade é melhor do que o cativeiro. Portanto, restringiremos essa discussão às vantagens e desvantagens da domesticação de animais domésticos, ou seja, animais cujo perfil genético foi modificado por seleção antrópica e que diferem das populações selvagens.

Espécies domésticas, em geral, não repelem o jugo humano. Isso pode levar à dedução de que essas são espécies que apreciam e se beneficiam da convivência com seres humanos, no entanto, devemos considerar que esses indivíduos, após nascidos, não tem outra escolha senão se submeter aos cuidados do ser humano.

Uma outra evidência pouco fundamentada de que essas espécies se beneficiam da convivência com seres humanos é que suas populações existem em tamanhos superiores aos das espécies silvestres. Essa falsa vantagem, no entanto, apenas demonstra que a criação animal, como a maior parte das atividades antrópicas, tende a extrapolar a capacidade suporte das áreas, degradar e modificar os ambientes e desalojar outras espécies de seus habitats. Portanto, para as demais espécies do planeta, exceto o ser humano, a existência de muitos indivíduos de algumas poucas espécies domésticas é algo negativo.

O fato do homem manter essas espécies em grandes populações não deve ser considerado uma vantagem nem mesmo para elas, uma vez que o indivíduo, e não a espécie em si, é que é sujeito de direito. E para o indivíduo pouco importa o estatus de sua espécie, se abundante ou não. Pelo contrário, a grande população mantida predispõe os indivíduos da espécie à exploração ou no mínimo ao abandono.

Portanto, a análise das vantagens e desvantagens da domesticação deve ser feita pelo ponto de vista do indivíduo animal e do ambiente.

Sabemos que as pessoas podem manter cães, gatos e mesmo porcos, galinhas ou vacas como animais de estimação. Esses animais, enquanto indivíduos, certamente podem se beneficiar dessa convivência, dependendo tão somente da boa vontade de seu mantenedor. Se seu mantenedor cuidar bem deles, viverão bem; se cuidar mal, viverão mal, mas de toda maneira eles não estão livres dessa dependência e boa vontade.

Além disso, há uma grande distância entre dar abrigo a um animal que necessite e que depende da atenção humana e entre fazer nascer esse animal. E a diferença é, precisamente, que no primeiro caso age-se como a solução para um problema e no segundo caso age-se como a causa do problema.

Fazer nascer um animal que para sempre dependerá do ser humano, mesmo que com a intenção de dar-lhe cuidado ou transferir seus cuidados a terceiros é na verdade um ato que envolve grande responsabilidade. Com frequência esses animais terminam em lares que não lhes darão o tratamento que merecem ou serão abandonados. O problema que envolve as populações de cães e gatos em todo o mundo apenas ocorre porque a decisão em relação à sua reprodução encontra-se na consciência de seus donos.

Diferente do caso em que o animal é adotado e nesse caso tutelado, a pessoa que adquire um animal mediante uma transação comercial torna-se seu proprietário. O animal é, então, um produto. Ele vale tanto quanto o comerciante cobra, e o propósito de seu nascimento é satisfazer a uma demanda, seja ela uma vontade ou uma carência humana.

Animais assim criados são trazidos ao mundo para servirem a um propósito humano, porque não há como defender que esse nascimento se deu para atender ao propósito do animal, visto que o animal não pode ter interesses antes de haver sido concebido. Seres humanos e outros animais só se tornam sujeitos de direito após sua concepção e aquisição de certa senciência. Portanto, fazer nascer animais de estimação é uma demanda humana e não uma demanda animal.

Cães e gatos, embora no ocidente na maioria das vezes não se prestem a fornecer carne, pele ou outros produtos, são como os animais de corte resultado de uma enorme cadeia de exploração. Esses animais são reproduzidos seletivamente de modo a aprimorar características consideradas pelos seres humanos como desejáveis. Além disso, dentro de uma ninhada, animais que não atendem a esses padrões são prontamente descartados ou abandonados.

Fêmeas são mantidas em canis e gatis apenas com o propósito de servirem como matrizes. Elas concebem ninhada após ninhada, até que, com a queda da fertilidade, são também descartadas. Seus filhotes são produtos empacotados em embalagens fofinhas, comercializadas em lojas de animais ou diretamente a particulares.

Na outra ponta dessa cadeia produtiva temos os animais que por um ou outro motivo tornaram-se indesejáveis, seja porque cresceram demais, não são mais fofinhos, seja porque os donos irão se mudar para um apartamento, seja porque os donos não sabiam que eles necessitavam comer e defecar todos os dias, seja porque adoeceram e o custo do tratamento excede o preço de um animal novo na loja, etc. Então esse animal é abandonado ou doado para uma pessoa que não se importa com esses seus “defeitos”.

Geralmente pessoas que adotam animais abandonados são conscientes de que uma coisa é manter animais recolhidos e outra é reproduzi-los. Quem recolhe animais geralmente os castra e os mantém, ou doa para quem se prontifica a mantê-los. Essas pessoas não veem animais como produtos, mas como entes sencientes que já nasceram e que dependem de cuidados humanos.

A cadeia produtiva acima descrita é o caso extremo, que descreve o processo produtivo de um canil ou gatil comercial, mas é daí que provém a maior parte dos animais de raças puras. Particulares também podem procriar animais em suas casas e colocar os filhotes para venda ou doação. De uma ou de outra forma os animais acabam perdendo. Animais comprados, ainda que de particulares e não de canis e gatis comerciais, não escapam do mesmo destino.

E mesmo para o caso de animais que sejam doados, não podemos deixar de nos questionar: Será que esses animais precisariam ter nascido? Com animais abandonados nas ruas, em abrigos, faz sentido um particular colocar sua cadela ou sua gata para cruzarem, mesmo sabendo que seus filhotes serão adotados em outros lares? E mesmo que essa adoção seja certa, será que os novos proprietários não terão a mesma ideia de reproduzir seus animais, dando assim origem a uma prole que não poderá ser indefinidamente absorvida, indo muitos de seus filhos e netos ir parar nas ruas ou no serviço de controle de zoonoses?

Portanto, reproduzir animais, mais do que uma atividade de grande responsabilidade envolve um ato de grande irresponsabilidade.

Veganos e defensores dos direitos dos animais tendem a gozar dos benefícios da convivência com animais “de companhia”, mas na maior parte dos casos esses animais não foram gerados para satisfazer a essa demanda do indivíduo. Eles eram animais que já haviam nascido e que foram rejeitados pela sociedade, e então adotados.

Em um mundo ideal a sociedade cuidaria para que os animais já nascidos levassem vidas longas e felizes, mas cuidaria para que não nascessem outros. Fazendo-se isso seria quebrado o eterno ciclo de dependência. Essa seria a única maneira de evitar que cães e gatos fossem explorados e abusados.

Epílogo

Considerando que animais domésticos são organismos geneticamente selecionados para suprir o homem com determinado recurso; que esses organismos não existiam antes dessa seleção e que sua introdução em ambientes naturais é inviável por diferentes motivos; que sua existência será sempre dependentes de cuidados humanos; que sua existência atende apenas aos interesses do ser humano, mas não o de outras espécies ou do meio ambiente, entendemos que animais domésticos compõe um grupo especial de animais e que a preocupação conservacionista não se aplica em seu caso.

Por outro lado, considerando que a condição para o reconhecimento de direitos individuais é o atributo da senciência, e que não se pode defender os direitos de organismos que ainda não foram concebidos, entendemos que animais domésticos já nascidos são sujeitos de direito, e por isso devem ter suas vidas preservadas. No entanto, a procriação desses animais deve ser evitada.

A ideia de que em um mundo vegano ideal os animais domésticos não mais existiriam pode soar extrema e impopular mesmo para veganos. Isso ocorre porque tendemos a raciocinar com um forte componente emocional. E quem não gosta da companhia de um cão ou gato? Ou mesmo da oportunidade de conviver harmonicamente com animais de fazenda?

Nós, e a maioria das pessoas conhecidas, mantemos animais em nossas casas. Temos prazer em conviver com eles e sabemos que alguns deles sentem prazer em conviver conosco. A maioria das pessoas em nosso circulo de relações dá bom tratamento aos animais em suas casas, embora saibamos que essa pequena amostragem não reflete a realidade da maioria.

Essa relação, embora harmônica no nível individual, não justifica a defesa da domesticação animal em termos globais, pois estar-se-ia utilizando a exceção para criar uma regra. São realmente poucos os animais domésticos que levam vidas felizes e mesmo esses são produtos da exploração. Alguns frutos dessa exploração são animais rejeitados e que foram posteriormente adotados. Adotar animais rejeitados é um ato de amor, mas não reproduzi-los. Por outro lado adquirir animais de pessoas que propositalmente os fizeram nascer é ser condizente com seu ciclo de exploração.

De toda forma, seja qual for o tratamento que lhes dediquemos, animais domésticos serão para sempre dependentes do ser humano, e isso por si só coloca sua existência em uma condição frágil.

Parte de nossa luta por um mundo melhor envolve fazermos o exercício mental de pensar de que forma será esse mundo, aonde queremos chegar. Embora eu mesmo me beneficie da convivência com animais domésticos, todos adotados, sou consciente de que o mundo só será perfeito quando não houverem mais animais dependendo do ser humano para nada.

10 de junho de 2009

Sérgio Greif é biólogo, mestre e ativista pelos direitos animais. Formado pela UNICAMP em 1998, é coautor do livro “A Verdadeira Face da Experimentação Animal” e autor de “Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação”. Entre outros assuntos, Sérgio se interessa por bioética, gestão de sistemas de saúde e métodos substitutivos ao uso de animais na ciência e ensino. É colunista da ANDA.

Fonte – http://www.anda.jor.br/2009/06/10/o-que-sera-dos-animais-domesticos-em-um-mundo-vegano-parte-4/

 

Publicado em www.gatoVerde.com.br

EM DEFESA DOS DIREITOS ANIMAIS