“Veganismo não é uma questão de compaixão ou misericórdia;

é uma questão de justiça fundamental.”

(Gary L. Francione)


 

Veganismo

Sérgio Greif*

Veganismo é o modo de vida que busca eliminar toda e qualquer forma de exploração animal, não apenas na alimentação, mas também no vestuário, em testes, na composição de produtos diversos, no trabalho, no entretenimento e no comércio. Veganos opõem-se, obviamente, à caça e à pesca, ao uso de animais em rituais religiosos, bem como a qualquer outro uso que se faça de animais.

Veganos são, portanto, vegetarianos que excluem animais e derivados não apenas de sua dieta, mas também de outros aspectos de suas vidas. Esse modo de vida fundamenta-se ideologicamente no respeito aos direitos dos animais e pode ser praticado por pessoas de quaisquer credo, etnia, gênero ou preferência sexual. O veganismo não tem relação com crenças políticas nem com preferências musicais, nem deve ser associado a determinada cultura. Trata-se, portanto, de uma prática universal.

Como praticar o veganismo

Embora a abstenção de produtos e serviços derivados da exploração animal pareça resultar em um modo de vida bastante restritivo, a prática do veganismo é relativamente simples e fácil, especialmente nos grandes centros urbanos.

Veganos são, primeiramente, vegetarianos. Isso significa que veganos jamais devem consumir alimentos que contenham a carne de nenhum animal (inclusive aves, peixes e invertebrados), ovos, leite, gelatina, mel, cochonilha ou outros ingredientes derivados de animais.

A dificuldade maior em não consumir esses alimentos encontra-se no fato de que a maior parte dos produtos industrializados possui um ou mais deles em sua composição. No entanto, é importante que produtos que possuam tais ingredientes, ainda que em pequenas quantidades, sejam boicotados, optando-se por produtos que não os contenham em sua composição.

Muitos vegetarianos optam por não consumir alimentos industrializados para, desta maneira, evitar o consumo de alimentos cuja composição não seja bem conhecida. Tal escolha é uma opção pessoal, não sendo tal prática inerente ao veganismo. Desde que isentos de ingredientes de origem animal, alimentos industrializados podem ser consumidos por vegetarianos.

Veganos devem, sempre que possível, evitar a utilização de produtos testados em animais ou que possuam ingredientes de origem animal em sua composição. A experimentação animal é uma das formas mais cruéis de exploração animal, estando, no entanto, bastante difundida, sobretudo nos produtos farmacêuticos, de higiene e em cosméticos. Há, porém, diversas marcas e linhas de produtos que não utilizam elementos de origem animal e nem utilizam animais para testar seus produtos.

Veganos também devem dar atenção ao vestuário. Sapatos e acessórios de couro, peles, seda, lã, penas e plumas são produtos oriundos da exploração animal. Há diversas opções no mercado que substituem com vantagens tais itens e não há como justificar a necessidade de continuar tal uso.

De igual maneira, veganos jamais devem entreter-se às custas de animais. Animais não estão nos zoológicos e aquários por opção; eles não realizam performances em circos porque assim o querem, nem pulam em rodeios porque consideram isso divertido. É óbvio que esses animais são coagidos a participar desses “espetáculos” torpes.

Não há como considerar touradas, corridas de animais, rinhas, vaquejadas, cavalhadas, caça, pesca e outras formas de tortura como sendo esportes ou manifestações culturais. Elas são, isso sim, demonstrações grosseiras e cruéis da dominação humana sobre outras espécies.

Embora veganos possam tutelar animais, deve haver toda uma ética em relação à aquisição dos mesmos. Animais jamais devem ser adquiridos mediante transação comercial, permuta ou escambo, nem devem provir de ninhadas produzidas intencionalmente com o objetivo de venda dos filhotes. Salvo algumas exceções, veganos geralmente adotam animais abandonados, preferindo animais sem raça definida e com menores chances de serem adotados por outros tutores.

Veganos devem opor-se, igualmente, a todas as outras formas de exploração animal.

Os veganos são radicais?

Em um certo sentido todas as pessoas do mundo são radicais. A maioria de nós é radicalmente contra a violência, radicalmente contra o abuso infantil, a injustiça… Não há nada de errado em ser radical em questões que julgamos justas.

O contrário de ser radical é ser moderado. Mas será que é sempre certo sermos moderados? Que imagem devemos ter de uma pessoa que tenha uma visão permissiva em relação a questões como a escravidão, o estupro e tantas outras?

Sim, veganos são radicais porque não aceitam de forma alguma a exploração animal, assim como não aceitam de forma alguma a exploração humana. Não aceitar significa fazer algo a respeito, mesmo que isso signifique questionar o modo de vida que estamos acostumados a ter.

De que forma o veganismo atua em defesa dos animais?

Todo sistema produtivo está sujeito às leis de mercado, inclusive os sistemas que envolvem a exploração animal. A cadeia produtiva que envolve esta inclui o produtor ou criador, o transportador, o processador ou abatedor, o distribuidor, o comerciante e o consumidor. Todos esses são elos importantes da cadeia de exploração animal e a falta de quaisquer desses elos compromete todo o funcionamento do sistema.

Pode-se dizer que uma pessoa que participe dessa cadeia apenas como consumidor é tão responsável pela morte do animal quanto, por exemplo, o abatedor, pois se trata de um sistema de exploração cíclico e interdependente. Como em qualquer crime, há a mão que desfere o golpe, mas tão responsável quanto quem o desferiu é a mão que paga por ele. Se ninguém comprasse carne, leite e ovos não haveria quem os vendesse. Não haveria interesse por sua produção, seu transporte e sua comercialização.

A proposta principal do veganismo consiste em atuar como uma força de mercado. Veganos efetivamente impedem que mais animais continuem a ser explorados quando boicotam produtos de origem animal, que tenham sido testados em animais ou que de alguma forma derivem ou resultem de exploração animal.

E maior será essa força de mercado quanto maior for o número de veganos efetivamente atuando nesse boicote. Por esse motivo há a necessidade de divulgação do veganismo para o maior número de pessoas possível. O objetivo do veganismo é pôr fim à exploração animal.

O que eu posso fazer?

O primeiro passo para trilharmos o caminho do veganismo e dos direitos dos animais é tornarmos a nós mesmos veganos, adotando esse modo de vida. Em muitos lugares encontraremos pessoas que dizem respeitar os direitos dos animais, mas se elas mesmas não se tornaram veganas elas não podem dizer que estão efetivamente defendendo os direitos dos animais. O veganismo é o primeiro e não o último passo a ser dado.

Esse importante passo só pode ser dado concomitante com a educação. Apenas educando-nos podemos adotar um veganismo consciente. O veganismo sem consciência nada mais é do que uma fase efêmera da vida. A educação também propicia que nos pronunciemos com propriedade sobre determinado assunto.

O segundo passo é tornarmo-nos difusores desse modo de vida. O veganismo deve ser sempre difundido por meio da educação e jamais por campanhas violentas, coercivas ou de mau gosto. As informações transmitidas ao público devem ser sempre confiáveis e bem fundamentadas, pois o veganismo deve ser algo atraente e não repulsivo, deve ser abrangente e não limitador.

*Sérgio Greif – Biólogo formado pela UNICAMP, mestre em Alimentos e Nutrição com tese em nutrição vegetariana pela mesma universidade, docente da MBA em Gestão Ambiental da Universidade de São Caetano do Sul, ativista pelos direitos animais, vegano desde 1998, consultor em diversas ações civis publicas e audiências públicas em defesa dos direitos animais. Coautor do livro “A Verdadeira Face da Experimentação Animal: A sua saúde em perigo” e autor de “Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: pela ciência responsável”, além de diversos artigos e ensaios referentes à nutrição vegetariana, ao modo de vida vegano, aos direitos ambientais, à bioética, à experimentação animal, aos métodos substitutivos ao uso de animais na pesquisa e na educação e aos impactos da pecuária ao meio ambiente, entre outros temas. Realiza palestras nesse mesmo tema. Membro fundador da Sociedade Vegana.

Fonte – www.sociedadevegana.org


 

 

A mudança de paradigma requer clareza quanto à base moral: o Veganismo.

Gary L. Francione

Se for para vermos uma mudança de paradigma um dia, temos de ser claros quanto a como queremos que o atual paradigma mude.

Devemos dizer claramente que o veganismo é a base inequívoca de qualquer coisa que mereça ser chamada de “movimento pelos direitos animais”. Se “direitos animais” significar alguma coisa, significa que não podemos justificar moralmente nenhuma exploração animal; não podemos justificar tratar os animais como recursos dos humanos, por mais “humanitário” que possa ser o tratamento dado aos animais.

Devemos parar de pensar que as pessoas vão achar o veganismo “desanimador” e que temos de promover algo aquém do veganismo. Se explicarmos claramente as ideias morais e os argumentos a favor do veganismo, as pessoas vão entender. Talvez nem todas se tornem veganas imediatamente; de fato, a maioria não se tornará. Mas devemos sempre ser claros quanto à base moral. Se, para mudar gradualmente, uma pessoa quiser fazer menos do que ser vegana, deixemos que isso seja uma decisão dela, e não algo que aconselhemos a fazer. A base moral deve ficar sempre clara. Nunca devemos promover a exploração “feliz” ou “humanitária” como moralmente aceitável.

A noção de que devemos promover a exploração “feliz” ou “humanitária” como “pequenos passos” ignora que as reformas do bem-estar não resultam num aumento significativo da proteção dos interesses dos animais; de fato, na maioria das vezes, as reformas do bem-estar não fazem nada além de tornar a exploração animal mais produtiva economicamente, ao focar em práticas que são ineficientes em termos econômicos, como as celas de gestação de porcas, o atordoamento elétrico de frangos ou as baias para vitelos. As reformas do bem-estar tornam a exploração animal mais rentável ao eliminar as práticas que são economicamente vulneráveis. Em geral, essas mudanças acabariam acontecendo de todo modo, e mesmo sem as campanhas bem-estaristas, precisamente porque corrigem ineficiências no processo de produção. E as reformas do bem-estar deixam o público mais à vontade quanto à exploração animal. O movimento pela carne/produtos animais “felizes” é uma prova bem clara disso.

Nós nunca defenderíamos o estupro, a escravidão humana ou o genocídio “felizes” ou “humanitários”. Portanto, se acreditamos que os animais importam moralmente e que eles têm interesse não apenas em não sofrer como também em continuar existindo, não devemos ficar investindo nosso tempo e nossa energia na defesa da exploração animal “humanitária” ou “feliz”.

As reformas do bem-estar e todo o movimento pela exploração “feliz” não são “pequenos passos”. Eles são passos grandes – para trás.

Alguns defensores dos animais acham objetável afirmar que o veganismo é a base moral porque isso “julga” as pessoas, ou constitui um julgamento de que o veganismo é moralmente preferível ao vegetarianismo e uma acusação de que os vegetarianos (ou outros consumidores de produtos animais) são pessoas “más”. Sim para a primeira parte; não para a segunda. Não há nenhuma distinção coerente entre a carne e os outros produtos animais. É tudo a mesma coisa e não podemos justificar o consumo de nada disso. Dizer que você não come carne mas come laticínios ou ovos ou qualquer outro produto animal, ou que você não veste peles mas veste couro ou lã, é como dizer que você come carne de vacas malhadas mas não de vacas marrons; não faz nenhum sentido. A suposta “linha” divisória entre a carne e todo o resto é apenas uma fantasia – uma distinção arbitrária feita para possibilitar que alguma exploração seja segmentada e considerada “melhor” ou moralmente aceitável. Isto não é uma condenação dos vegetarianos que não são veganos; é, no entanto, um apelo para que essas pessoas reconheçam que suas ações não estão de acordo com um princípio moral que elas dizem aceitar, e que todos os produtos animais são o resultado da imposição de sofrimento e morte a seres sencientes. Não é uma questão de julgar indivíduos; é, no entanto, uma questão de julgar práticas e instituições. E esse é um componente necessário de um viver ético.

Se considerarmos impossível avaliar que o veganismo é moralmente preferível ao vegetarianismo porque “cada um de nós tem sua própria jornada”, então a avaliação moral se torna uma coisa completamente impossível ou especista. Torna-se impossível porque, se “cada um de nós tem sua própria jornada”, então não há nada a dizer ao racista, ao sexista, ao antissemita, ao homófobo, etc. Se dissermos que essas formas de discriminação são moralmente más, mas no que diz respeito aos animais “cada um de nós tem sua própria jornada” e não podemos fazer avaliações morais quanto a, por exemplo, o consumo de laticínios, então estamos sendo especistas e não estamos aplicando, aos não humanos, a mesma análise moral que aplicamos no contexto humano.

Ao discutir o veganismo com os vegetarianos ou outros consumidores de produtos animais, nunca devemos transmitir a mensagem de que os consideramos gente “má”. Em vez disso, devemos focar em como qualquer forma de exploração animal é incoerente com o princípio moral que eles mesmos dizem ter: ou seja, que os animais são membros da comunidade moral e que a imposição de sofrimento e morte a qualquer membro dessa comunidade – humano ou não humano – requer uma justificativa convincente. E preferências de paladar, conveniência, senso de moda etc. não constituem uma justificativa convincente.

Finalmente, devemos sempre deixar claro que a exploração animal é uma coisa errada porque implica especismo. E o especismo é errado porque, como o racismo, o sexismo, a homofobia, o antissemitismo, a discriminação de classe e todas as outras formas de discriminação humana, envolve violência contra membros da comunidade moral onde essa violência não pode ser justificada moralmente. Mas isso significa que aqueles dentre nós que se opõem ao especismo também se opõem, necessariamente, à discriminação contra humanos. Não faz sentido dizer que o especismo é errado porque é como o racismo (ou qualquer outra forma de discriminação) mas que não temos uma posição quanto ao racismo. Temos sim. Devemos nos opor ao racismo e devemos sempre ser claros quanto a isso.

Veganismo se trata de não violência. Trata-se de não causar dano aos outros seres sencientes, a si mesmo e ao meio-ambiente do qual todos os seres dependem para viver. Na minha opinião, o movimento de direitos animais é, em seu âmago, um movimento pelo fim da violência contra todos os seres sencientes. É um movimento que busca justiça fundamental para todos. É um movimento emergente pela paz que não para na linha arbitrária que separa os humanos dos não humanos. Mudar o paradigma hierárquico de exploração generalizada que vem dominando o mundo por milênios requer muito trabalho duro. E esse trabalho duro requer clareza.

***

Se você não for vegano(a), por favor considere tornar-se vegano(a). É uma questão de não violência.

Ser vegano(a) é a sua declaração de que você rejeita a violência contra os outros seres sencientes, contra si mesmo(a) e contra o meio-ambiente do qual todos os seres sencientes dependem.

O mundo é vegano! Se você quiser.

Gary L. Francione, Professor, Rutgers University – © 2012 Gary L. Francione – Tradução: Regina Rheda

Postado por Gary L. Francione em seu blog em 9 de janeiro de 2012.  http://francionetraduzido.blogspot.com.br


 

Manifesto da Sociedade Vegana

Brasil, 14 de março de 2010

No mundo de hoje, mais que em qualquer época anterior, os valores da paz, da não-violência, da justiça e da igualdade de direitos inspiram grande parte dos seres humanos. Ainda que a violência, a guerra, a injustiça e a desigualdade persistam, elas são cada vez menos vistas como a ordem natural das coisas, e cada vez mais denunciadas como violações de diretos fundamentais dos indivíduos. Entretanto, os seres humanos clamam pela não-violência, pela paz, solidariedade e direitos dos menos favorecidos, sem se darem conta de sua contribuição para a persistência desses males.

Gandhi ensinou que “devemos ser a mudança que queremos ver no mundo”. Não se pode pedir por não-violência, paz e justiça, e, ao mesmo tempo, promover a violência e a injustiça. Uma das formas mais graves e generalizadas de violência e injustiça é aquela à qual submetemos os animais não-humanos. Nesse sentido, não se pode falar em transformações positivas reais sem falar em veganismo.

O veganismo é uma filosofia, uma concepção ética e um modo de vida, pautados sobre o fundamento dos direitos animais, ou seja, o reconhecimento de que os animais, sendo seres sencientes, devem ser incluídos em nossa comunidade moral e ter seus interesses respeitados.

São interesses dos animais:

a continuidade de sua própria vida;

a liberdade e autonomia para buscar os meios para sua sobrevivência e seu bem-estar; e,

não serem utilizados como recursos ou meios para fins humanos, tendo sua existência propósito em si mesma.

A todos esses interesses correspondem direitos, os quais são violados quando animais são submetidos à exploração e à condição de propriedade. O respeito aos direitos animais somente ocorrerá com o fim de sua apropriação e exploração.

Por isso, o veganismo propõe a abolição do consumo de todos os produtos e atividades que implicam exploração animal:

alimentação: consumo de carne de quaisquer animais, vertebrados ou invertebrados, ovos, leite, gelatina, mel, cochonilha, etc.;

vestuário: uso de couro e outras peles, lã, penas, plumas, seda, etc.;

entretenimento: zoológicos e aquários, circos com animais, rodeios, touradas, corridas de animais, feiras e exposições de animais, rinhas, vaquejadas, farras-do-boi, cavalgadas, esportes que utilizam animais, etc.;

trabalho animal: tração e transporte, cão-guia, cão farejador, cão policial, cão segurança, etc.;

experimentação animal: procedimentos científicos ou didáticos, testes de segurança ou de qualidade de produtos diversos;

caça e pesca;

comércio de animais domésticos, exóticos ou silvestres;

utilização de animais em rituais religiosos;

outras formas de exploração animal.

Nos sistemas e estilos de vida hoje predominantes ocorre um favorecimento das espécies animais com as quais as pessoas se identificam, havendo rejeição, indiferença ou desprezo pelas espécies com as quais não ocorre essa identificação. Dessa forma, atribui-se valor à vida animal de acordo com preferências pessoais. Se se gosta de cães, chimpanzés e mamíferos marinhos, então suas vidas têm algum reconhecimento; se, vacas, galinhas e porcos são animais que não geram empatia, sua submissão ao jugo humano é tida como legítima, assim como os benefícios advindos de sua exploração.

Chamamos especismo a discriminação contra espécie, tão arbitrária e irracional quanto o racismo e o sexismo, entre outras. O veganismo é a única forma coerente de combate ao especismo.

Assim como a sociedade não tolera o racismo e o sexismo, nossa luta é para que ela também não tolere o especismo. O veganismo, ao tratar do respeito aos direitos de seres sensíveis e conscientes, afirma que sua adoção não deve ser vista como questão de opção pessoal, mas de obrigação moral.

Cada organismo animal é um indivíduo, e como indivíduo tem seus direitos. Seu valor independe da espécie à qual ele pertence, se rara ou abundante, útil para algum propósito humano, ou não. Sua existência possui valor em igual medida e se justifica por si mesma.

O veganismo deve ser amplamente praticado e jamais vinculado a outras filosofias, ideias e crenças que não sejam a dos direitos animais. Ele não deve ser um modo de vida restrito a uma pequena parcela da população ou identificada com uma certa “tribo”. Manter o veganismo atrelado a outras práticas e ideias é condená-lo a permanecer em um círculo restrito de pessoas.

Ainda que o veganismo dependa da iniciativa de cada indivíduo, apenas a sua prática por toda a humanidade irá assegurar que os animais tenham seus direitos respeitados. Ademais, como em toda grande mudança, a transição para esse modo de vida não é algo que se faça sozinho. O indivíduo que realiza essa escolha, em geral busca o auxílio de outras pessoas ou informações que já estejam disponíveis. Nesse sentido, se pode entender a necessidade da existência de pessoas que estejam dispostas a compartilhar suas experiências, divulgar o veganismo e disponibilizar informações que sejam confiáveis.

O trabalho de divulgação do veganismo, do vegetarianismo e dos direitos animais consiste em esclarecer sobre esse princípio e modo de vida, notadamente o que se refere à nutrição, à dieta vegetariana e à abolição da exploração animal. A Sociedade Vegana promoverá o veganismo com base em informações confiáveis e bem fundamentadas, de modo a desfazer mitos, informações pseudocientíficas e falsificações históricas.

Os direitos animais são a base do veganismo. Não é possível falar em um, sem citar o outro. Os demais tópicos, como nutrição, benefícios à saúde e questões sócio-ambientais, são assuntos subsidiários que contribuem para sustentar e argumentar em favor do veganismo.

Qualquer indivíduo ou organização que se proponha a falar em direitos animais deve fazê-lo tomando como base apenas os interesses fundamentais desses animais. Não é aceitável que se busque simplesmente regulamentar, disciplinar ou justificar a exploração animal. Isso não atende aos interesses dos animais e certamente não pode ser sustentado por uma pessoa que adote o veganismo.

Da mesma forma, é importante que esclarecimentos sejam feitos com relação ao vegetarianismo: não é uma filosofia, nem um modo de vida. O vegetarianismo é exclusivamente uma corrente dietética que exclui da alimentação os ingredientes de origem animal, mesmo que sejam subprodutos e derivados que não resultaram diretamente na morte imediata do animal. Pessoas que consomem peixes, ovos, leite, mel ou outros produtos de origem animal não são genuinamente vegetarianas.

Entende-se que o abandono repentino de todos os produtos de origem animal da dieta não seja uma prática comum e que a maior parte dos vegetarianos atravesse um período de transição, no qual alguns itens são abandonados, enquanto outros permanecem. No entanto, sabe-se que nem todos os que abandonam alguns ingredientes de origem animal se tornarão vegetarianos, podendo mesmo aumentar o consumo dos produtos de origem animal que permaneceram na dieta. Dessa forma, esses hábitos alimentares híbridos podem representar até mesmo um incremento na exploração animal.

Do mesmo modo, pode-se enganar a si mesmo crendo que o consumo de produtos de origem animal obtidos de forma considerada mais aceitável, “ética” ou “humanitária” não apresenta problemas; pode-se querer defender que assim está-se levando uma vida compatível com o  bem-estar desses animais. Procedendo dessa maneira, não se contribui para o bem-estar animal, apenas se promove sua exploração, tornando-a mais aceitável aos olhos do grande público. A única forma de consumo verdadeiramente consciente e ético é a que não inclui produtos de origem animal.

O veganismo e os direitos animais podem ser consistentemente defendidos tendo como base a ética, a razão pura e argumentos cientificamente fundamentados. Sua difusão deve ser feita através de uma educação capaz de estimular o rompimento de paradigmas, com mensagens claras e objetivas. Eis o principal propósito da Sociedade Vegana.

14 de março de 2010, data de fundação da Sociedade Vegana, uma sociedade de caráter pacifista e não-violento, criada fundamentalmente para divulgação dos direitos animais e do modo de vida vegano. http://www.sociedadevegana.org/


 

A desanimalização do consumo humano:

desafios da ética vegana

Sônia T. Felipe

Há milênios, humanos possuem animais, usam, escravizam e matam animais para atender a qualquer propósito seu. Há milênios, os humanos inventaram uma ética para justificar a animalização de seus hábitos e servir igualmente a seus propósitos, a ética antropocêntrica. Humanos inventaram não apenas a escravização de animais, alegando que eles são inferiores. Eles inventaram um modo de justificar suas práticas escravizadoras, ao argumentarem que seres inferiores a eles nascem para servi-los, e, por isso, são objetos passíveis de apropriação.

Chegou a hora de redefinir a concepção moral antropocêntrica, colocando-a em seu devido lugar: ela deve limitar-se a conceber os humanos como fonte da moralidade, definindo o fim último da ética como sendo o bem que os humanos podem fazer ao desanimalizarem seu consumo.

Por animalização da alimentação, vestuário, lazer, ciência e linguagem humanas, entendo toda prática levada a efeito às custas do bem próprio, da liberdade e da vida de animais não-humanos e humanos. A ética precisa partir do valor maior impregnado à existência dos seres vivos: poder viver em liberdade.

Na perspectiva ética vegana, humanos perdem o estatuto de proprietários e beneficiários da vida alheia. Reconhecer direitos fundamentais à vida e ao bem próprio de cada ser vivo é o modo razoável de resguardar a singularidade do bem próprio à vida deles, sendo indiferente ao agente moral a espécie à qual o animal pertence. Assumindo uma posição no âmbito do movimento vegano, o indivíduo orienta-se por um sentido positivo de expressão de si, compartilhado pela comunidade formada por outros que também assumem a perspectiva da ética animal não-antropocêntrica como eixo existencial de seu projeto de vida. Olhar os interesses animais com o mesmo respeito com que se olham os interesses humanos exige admitir para si mesmo e afirmar publicamente que a justiça genuína não será alcançada enquanto permanecer amordaçada e algemada por linhas divisórias tirânicas que desqualificam o valor inerente à vida de espécies diferentes da nossa.

A convicção que ilumina a atitude vegana é a de que não se pode ser ético e ao mesmo tempo negar que o bem próprio de outros seres vivos importa para eles, tanto quanto importa o nosso, para nós. Pensar com essa clareza conceitual motiva a agir em prol da construção de um modo de vida que afirma os direitos animais, ecossistêmicos e humanos, sem que, para cada um desses âmbitos tenha-se que forjar uma ética antagonista às demais. Nossa moralidade tem sido pautada até o presente momento sobre uma espécie de tricotomia moral: ela nos ensina a distinguir e discriminar interesses animais e de ecossistemas naturais, ao priorizar e privilegiar os interesses humanos, como se os humanos não fossem constituídos de tecidos, necessidades orgânicas e interesses naturais da mesma ordem em que o são os outros animais.

Ainda que, por um lado, a atitude vegana requeira um conceito claro da finalidade para a qual a ação é orientada, qual seja, resguardar o bem da vida, para todo indivíduo que a vive, sem especismos eletivos, tal radicalidade não inclui a proposta de que o veganismo deva impor-se como um modo de vida aos demais. Cada um de nós tornou-se vegano motivado por ideias, convicções e exemplos recebidos, sem imposição, do legado social e pessoal contra hegemônico. Em vez do padrão autoritário e conservador que tem caracterizado a moralidade até os dias de hoje, o veganismo adota um padrão não impositivo nem proibitivo, embora sua atitude siga com firmeza e coerência a prescrição inerente ao princípio ético fundamental da não-violência contra quaisquer indivíduos vivos.

Reconhecer, à própria biografia, que o uso de produtos de origem animal está definitivamente interditado, é uma conclusão natural para quem não admite que o bem-estar, a felicidade, o prazer ou qualquer outro benefício pessoal na vida, sejam alcançados à custa de dor, sofrimento, privação de liberdade e morte de outros, não importando o formato no qual esse outro aparece na esteira da vida.

Antes de seguir simplesmente a corrente vegana, cada indivíduo precisa entender o propósito dessa escolha, seu desdobramento e consequências. Sem compreender que o veganismo visa exclusivamente a libertação animal de todas as formas de exploração, uso, abuso e assassinato praticadas por humanos, não há uma atitude vegana genuína. Mas, achar que essa conquista será obtida de mão-beijada fere a intuição. A cultura na qual veganos têm que viver é absolutamente animalizada, no sentido exposto acima.

A decisão de tornar-se vegana ou vegano implica disponibilizar-se para enfrentar a própria formatação moral e os embates inevitáveis no âmbito da família, da escola, da atividade profissional e das demais práticas sociais, incluindo nelas o hábito de sair com amigos para comer fora, comprar presentes, organizar festas de final de ano, de aniversário, divertir-se e até mesmo escolher uma profissão.

Entender a natureza do ideal vegano como prescritiva, no sentido ético de ordenar as próprias ações à luz de um princípio moral válido no âmbito da própria biografia, mas não impositiva nem proibitiva à biografia alheia, e compreender que essa natureza deve nortear as ações educativas que visam orientar os demais para a tomada de decisão de tornar-se vegana ou vegano, é um desafio para todos os que ora se reúnem para fundar a Sociedade Vegana. A prescrição maior à qual todos estamos submetidos, a partir da qual as demais serão acatadas, é estabelecida, na Sociedade Vegana, não por fulano ou sicrano, pois isso caracterizaria autoritarismo e impositivismo, pelo princípio ético universal da não-violência, acompanhado da regra da coerência moral pessoal com tal princípio, e da disposição de fazer com que ele ilumine decisões pessoais e grupais a partir desse momento.

Para qualquer ser vivo, a maior violência que se pode cometer é tirar-lhe a liberdade de mover-se para prover-se seguindo o modo que melhor se adequa ao alcance do bem que lhe é próprio. Por isso, a defesa dos direitos animais passa inevitavelmente pela libertação deles de todas as formas de privação da liberdade à qual estão condenados no sistema que os torna objetos de propriedade humana. Não são os veganos quem proíbem outros de usarem animais como se fossem coisas descartáveis. Quem o faz é o princípio ético que todo humano admite como válido quando seu interesse em não ser sequestrado, usado, explorado e assassinado está em jogo. Por submeter-se ao princípio ético, o movimento vegano admite que tal princípio prescreve certas ações, e proscreve outras.

Ao submeter-se a um princípio ético de tal envergadura, o vegano sabe que deve manter-se coerente. Não pode levantar o princípio como escudo para defender-se da violência de outros humanos contra si, e baixá-lo para melhor poder praticar a violência contra outros animais.

Se o ideal normativo maior que prescreve nossa atitude em relação a animais de outras espécies não admite a propriedade sobre sua vida, seu organismo ou quaisquer partes e elementos extraídos e derivados deles, então ele prescreve absolutamente o princípio da não-violência contra eles.

A escravização de humanos foi abominada há quase dois séculos. Para fazer frente ao sistema das práticas institucionais que a fomentava, foi necessário um movimento político abolicionista. A violência da escravização de animais para fins humanos requer um movimento semelhante àquele, de envergadura incalculavelmente maior, pelo número de implicados nela. Semelhante, porque, nesse caso, as vítimas da apropriação não podem libertar-se, não podem juntar forças ou organizar-se para enfrentar a instituição da escravidão. Incalculavelmente maior, pois, no caso da abolição do uso de animais, estamos diante de algo espantosamente disseminado em todas as mentes humanas. O uso de animais não-humanos para atender interesses, necessidades e negócios humanos perpassa todos os âmbitos da produção e consumo de mercadorias e serviços.

A luta vegana não será travada contra inimigos externos, os tradicionais representantes do sistema institucionalizado de escravização de animais, interessados nos lucros que ela representa. A desanimalização de nosso consumo terá que enfrentar a matriz cognitiva e moral instalada em nossas próprias mentes. Formadores de opinião e educadores veganos devem estar cientes disso, e aprender a superar tal matriz cognitiva e moral em si mesmos, desdobrando as pregas nas quais a animalização dos benefícios obtidos pelos humanos tornou-se natural. Ao mesmo tempo, devem indicar caminhos para que outros também possam se desfazer desses hábitos arraigados. Produzir meios para que humanos mal-acostumados à escravização dos animais possam entender o erro moral em se viver às custas deles e tomar a decisão de abolirem de suas vidas os hábitos de consumo que fomentam tais práticas é tarefa central para os que ingressarem na Sociedade Vegana.

O princípio da não-violência prescreve a abolição de todas as formas de destruição praticadas contra seres vivos: mental, verbal e institucional; em outras palavras, a abolição de toda emoção negativa que envolva agressão contra qualquer ser capaz de sentir dor e sofrer; a abolição do uso de argumentos que justificam causar dor e sofrimento a qualquer ser senciente para servir a qualquer propósito humano; a abolição de todas as práticas individuais e institucionais de inflição de dor e sofrimento a esses seres, incluídos os da espécie humana. Ser vegano, portanto, implica em enfrentar o desafio de fazer uma faxina geral e profunda nos próprios conceitos, em erradicar qualquer emoção voltada à destruição dos interesses ou da vida de qualquer animal senciente, e a desassinar o contrato em vigor que nos autorizou moralmente a animalizar, isto é, a fazer uso dos animais, para quaisquer propósitos humanos.

Desdobrar as pregas da moralidade na qual estamos plissados requer coragem e persistência. Quando julgamos ter alcançado um patamar razoável de abolição de produtos de origem animal que antes compunham a cesta básica de nossa aquisição diária, somos confrontados com o fato de que quase todos os produtos da indústria química usados para confeccionar alimentos processados, tecidos, calçados sintéticos e outros itens do uso diário contém ingredientes produzidos com componentes derivados ou extraídos de animais.

A tarefa de desdobrar continuamente as pregas nas quais esconderam de nós a imagem de nossa moralidade animalizada é árdua. Ela representa um embate mental, emocional, espiritual, político, econômico e moral com os padrões ou conceitos forjados em nossa própria mente. A natureza positiva do ideal vegano pode ser melhor expressada na orientação constante que oferecemos às pessoas, na investigação ininterrupta que fazemos dos labirintos pelos quais se espalham em nossa mente conceitos e valores que ora nos dispomos a desanimalizar.

O que melhor um vegano pode fazer para mudar a moralidade vigente, é agir de forma firme e serena nessa busca. O exemplo de atitude vegana na própria biografia é o melhor legado que se pode deixar aos que nos rodeiam e aos que virão em seguida com tal propósito. Impor, ou proibir, não resultará em benefício para os animais que ora se encontram à espera da libertação. Argumentar com firmeza e lucidez, mantendo o princípio da não-violência e o propósito de abolir todo especismo eletivo como metas a serem alcançadas, fazem parte do caráter vegano. Radicalidade, nesse caso, não pode ser confundida com autoritarismo ou impositivismo.

Mas, para que esses três conceitos não sejam confundidos é preciso manter clara a linha divisória que separa as ações morais voltadas à defesa dos animais, impedindo, especismos eletivos, por exemplo, que certos tipos de animais recebam consideração, ao mesmo tempo em que se omite que outros da mesma espécie, mas de gênero distinto continuem a ser escravizados para atender aos negócios humanos, como é o caso de defender a abstenção da ingestão de carnes e silenciar sobre a ingestão de laticínios.

Pode intrigar a tese que defende a natureza prescritiva da ética vegana sem defender que ela seja impositiva ou proibitiva. Crer que prescrições, e não imposições e proibições, sejam o melhor caminho para uma educação moral genuína, produz certa ansiedade. Quem proíbe os humanos de fazerem certas coisas, ou impõe a eles rever os conceitos sobre os quais assentam sua moralidade, não são os veganos, é o princípio ético da não-violência, do respeito pela autonomia dos seres sujeitos de suas vidas, de quem jamais deveríamos ter tirado esse estatuto, em outras palavras, a quem jamais deveríamos ter escravizado.

Ainda que precisemos ser incisivos em nossos argumentos a favor de práticas coerentes para a abolição do uso de animais em quaisquer itens do consumo diário, não precisamos ser autoritários. A argumentação coerente e consistente tem sido acusada de, ou confundida com, autoritarismo. Cai-se, assim, no relativismo moral sob o qual padecem todas as espécies de seres vivos. Confunde-se permissividade com não-autoritarismo. Nessa lógica, o valor da vida dos animais torna-se relativo ao padrão dos interesses e negócios humanos que sofrem danos caso seja abolida a escravização deles. Não ser autoritário não é o mesmo que ser permissivo. Não se admite na própria biografia certos hábitos de consumo. Argumenta-se em público para fundamentar a escolha pessoal. Sugerem-se práticas substitutivas para ajudar outros indivíduos ou grupos a erradicarem o uso desses produtos e serviços. Não se faz as coisas pela metade. Se comer um certo tipo de alimento implica em causar dor e sofrimento aos animais, usados para extração da matéria desse alimento, e se isso não pode ser moralmente defensável, então, pela mesma razão, não é defensável comer qualquer outro tipo de alimento que tenha semelhante origem.

Ao prescrever uma atitude ou ação, o sujeito que o faz admite em si mesmo a capacidade racional. Acatar uma prescrição ética implica em admitir um princípio como universalmente válido, ainda que o modo prático pelo qual esse princípio venha a ser seguido possa variar de cultura para cultura ou de época para época. Admitindo sua própria racionalidade, isto é, admitindo que tem liberdade e inteligência para compreender, reconhecer e seguir uma norma moral, por reconhecê-la como válida, o sujeito imediatamente admite que o mesmo deve valer para os demais que o rodeiam. Prescrever o ideal vegano, nesse sentido, implica em admitir que cada um, munido das melhores informações e com domínio da perspectiva ética animalista, pode chegar à conclusão de que os animais não foram criados para atender aos caprichos e negócios humanos, e sim para viverem espécies de vida que têm singularidade em suas semelhanças e diferenças quando comparada às outras, tanto quanto a tem nossa própria vida.

Quando entendemos racionalmente o por quê de algo ser certo ou errado, queremos que os demais seres racionais imediatamente também o entendam. Mas, a construção da natureza ética nos humanos não se dá num passe de mágica. Mesmo quando temos clareza ética sobre uma série de questões morais, ainda assim relutamos em seguir aquilo que nossa razão nos dá por certo ou verdadeiro. A teia na qual nos enredamos, ao forjarmos o modo de vida antropocêntrico e hostil aos interesses de outros animais, coloca-os na condição de objetos de propriedade. Abrir mão da condição de proprietário e senhor requer força, coragem e desprendimento. Esse é o modo da libertação humana.

O modo de vida vegano precisa ser seguido com plena consciência de que estamos atados à mesma teia na qual os conceitos e valores que desprezam, hostilizam e destruem a liberdade, a autonomia, o bem próprio e a vida dos animais são mantidos por todos nós. O veganismo requer paciência e lucidez, mas, sobretudo, coragem para o enfrentamento. Não para confrontar inimigos externos, mas para enfrentar o próprio padrão mal-acostumado de usar animais para atender às necessidades humanas, não importa se triviais ou cruciais.

Para ser vegano sem ser impositivo, há que fomentar virtudes esquecidas nos tempos atuais. Uma delas é o senso de justiça para além da barreira especista e sexista antropocêntrica. Com tal virtude chegamos ao respeito pelos interesses singulares de seres de outras espécies, e a eles concedemos finalmente a atenção amorosa e a compaixão éticas, requeridas dos defensores da libertação animal que atendem ao que o princípio da não-violência racionalmente prescreve. Sem aquelas virtudes a energia se esvai e o ativismo político em defesa dos direitos animais acaba por não trazer no curto prazo os resultados ansiados.

A par com a virtude no plano individual, os veganos precisam aprender a conviver com os demais, nem sempre antenados na mesma frequência mental e emocional deles. Cada vegano compõe um mosaico de valores e interesses com personalidade única, que encontra um elo comum, o da defesa dos direitos animais e da abolição de todas as formas de sua exploração e morte. Para além da afinidade ética, veganos cultivam também outros interesses. O veganismo não configura, assim, uma ortodoxia existencial. Por isso, les gôuts des autres (o gosto dos outros) e suas preferências precisam ser reconhecidos. Fingir que não temos idiossincrasias atrapalha nossa comunicação e prejudica o vigor que nosso objeto comum, a luta pela abolição de todas as formas de escravização de animais de quaisquer espécies, requer.

A vida nasce livre. Em qualquer que seja seu design, um direito fundamental lhe assiste: o de prover-se nos moldes específicos, orientada pela mente particular que tal modo cria. Não importa o formato no qual o indivíduo nasce. A aparência pode ter muito peso para uma estética especista, para uma moral especista que não reconhece valor a não ser no que tem semelhança conosco, mas não tem peso algum para a ética animalista biocêntrica, pois essa tira o agente moral do centro das atenções. Em seu lugar coloca aqueles que sofrem os desmandos do domínio humano tirânico. Esses são o fim último para o qual a ação moral deve tender.

Os animais não são objetos de propriedade, embora por milênios tenham sido tratados e definidos como tais. Isso se deve ao fato de que, quem os citou pela primeira vez na história como objetos de propriedade, existindo para atender aos negócios, interesses e necessidades humanas (Código de Hamurabi e as Leis de Eshnuna), não encontrou oposição alguma à ideia. De algum modo, os que estavam enredados na teia do poder econômico que o uso de animais permitia erigir, eram os mais interessados em desqualificar o valor inerente à vida de animais e de humanos escravizados. Humanos destituídos de propriedade, e, portanto, do poder que ela confere, estavam e ainda estão na exata condição das demais espécies animais escravizadas. À esses a palavra ou a expressão de sua forma específica de viver não é concedida. Deles, toda a liberdade foi tirada.

Hoje, a história mostra outra face. Já há quem se oponha frontalmente contra o uso de animais, mesmo sabendo que tal uso não será extinto do dia para a noite, de forma mágica, sem requerer trabalho e dedicação dos que a ele se opõem. Os que se posicionam e expressam de forma vegana não estão mais na condição de escravos, embora também não estejam na de senhores. Abdicar do poder tirânico exercido por milênios sobre os corpos, a sexualidade e a vida alheia, é a forma de libertação que os veganos abraçam.

Cabe justamente aos que não ocupam nem a posição de senhores, nem a de objetos da propriedade, provar que é possível abdicar das práticas institucionalizadas de escravização sexual dos animais não-humanos e viver dignamente a vida de um humano. Não esperemos que os animais nos provem isso, nem aguardemos que seus abusadores sexuais o reconheçam. Isso seria o mesmo que esperar que perdessem o gosto de capitalizar lucros animalizados. Somos nós, cidadãs e cidadãos livres da propriedade sobre a vida e a sexualidade de outros seres vivos, que devemos produzir a desanimalização das práticas e negócios humanos.

O projeto de criar uma cultura não animalizada, livre do emprego de animais vivos ou mortos, e sem a dependência de derivados de seus corpos, vivos e mortos, enfrenta o desafio de abolir a produção industrializada de animais para consumo humano, experimentos, lazer e suprimentos. A objetificação de animais só é possível pela dominação sexual que os humanos exercem sobre eles, em outras palavras, pela mecanização do processo reprodutivo.

A natureza reprodutiva de bovinos, suínos, avinos, caprinos e equinos não permite sua reprodução em números que batem recordes em relação a toda reprodução animal conhecida ao redor do planeta. Somente para a exploração da indústria de laticínios, os Estados Unidos e o Brasil contabilizam juntos uma população de aproximadamente 500 milhões de vacas, escravas sexuais, inseminadas mecanicamente ao longo dos 6 a 8 anos de gestação, parto e lactação aos quais são condenadas até exaurirem. Destino melhor não é garantido às galinhas exploradas sexualmente pela indústria de ovos. Ao cabo de 4 anos estão esgotadas. Tanto as galinhas quanto as vacas, exploradas sexualmente pela indústria ovo-lacto, acabam nos matadouros. Não se pode adotar o modo de vida vegano e ao mesmo tempo ignorar a escravização sexual de algumas espécies animais, mantendo-se o especismo eletivo sexista, enquanto se condena a escravização de outras.

A abolição da escravização animal passa inevitavelmente pela abolição das práticas de escravização sexual animal. Não havendo reprodução mecanizada, não há como forçar a nascerem os bilhões de seres produzidos pela indústria de carne, leite e ovos.

O projeto de vida vegano visa ensinar ao ser humano a prover-se de modo não-animalizado, quer dizer, a obter benefícios em sua vida, tais quais saúde, bem-estar e realização profissional, sem que isso represente malefício para os animais. Esse é um desafio à inteligência humana. Enfrentando-o, ampliamos nossa criatividade. É preciso inventar modos veganos de comer, vestir-se, manter-se saudável, curar doenças, divertir-se e processar itens sem componentes derivados de animais.

Se há humanos dispostos a abolirem o consumo de todo e qualquer uso de animais, já não há um poder absoluto, hegemônico e inquestionável de propriedade sobre eles. Embora ainda sejam poucos os humanos que abdicam de usar animais e produtos derivados deles, esses poucos já marcam sua presença no mundo. Formamos uma Sociedade Vegana, uma comunidade dos que traçam sua biografia em torno do eixo da libertação dos animais e da defesa deles como sujeitos de direitos fundamentais, daqueles direitos vinculados à vida, à liberdade e à condição de vulnerabilidade na busca do próprio bem a seu próprio modo.

Se tínhamos algo a que se podia denominar “movimento vegano”, embora não houvesse sido organizado, agora juntamos os projetos e experiências individuais e formamos um leque de ações destinadas à redefinição dos padrões morais nos quais todos fomos formatados. O movimento vegano é, nesse sentido, um movimento ético, político e cultural de proposição e construção de uma cultura moral na qual os animais não serão mais considerados objetos de propriedade, mas, sujeitos de sua vida (Tom Regan). Na condição de sujeitos, cabe a eles direitos fundamentais, tais quais os atribuídos a qualquer humano: o direito à vida, o direito à não privação da liberdade, o direito à reprodução, o direito ao movimento necessário para o provimento nos padrões individuais e próprios de cada espécie. A privação, eticamente injustificável, de qualquer desses direitos, viola a condição de sujeitos de suas vidas, tão inerente à vida animal quanto o é à humana.

Isto posto, resta lembrar que a jornada vegana mal começou, se contamos a rede quase infinita de práticas institucionalizadas de exploração dos tecidos animais para fabrico de itens do consumo humano. Até aqui fizemos o que estava ao nosso alcance, cada um a seu modo, para difundir a ideia de que algo precisa ser revisto no que diz respeito ao estatuto de objetos de propriedade ao qual animais não-humanos estão condenados.

Temos nos abstido de comer alimentos animalizados (industrializados a partir de matéria de origem animal), de usar roupas e acessórios animalizados (fabricados a partir de matéria prima de origem animal), de comprar produtos de higiene pessoal e de limpeza animalizados (compostos a partir de derivados de origem animal e testados em animais), de visitar espetáculos animalizados (montados usando animais como figurantes), de frequentar espaços animalizados (atividades que divertem humanos às custas do sofrimento dos animais). Embora cada um de nós tenha feito tudo isso, ou um pouco disso tudo, individualmente, ainda não nos juntamos para começar a fazer as mesmas coisas de modo coletivo, isto é, político.

Estamos criando nesse momento uma nova cultura. Ao fazermos as coisas esclarecidos na presença uns dos outros, o fazemos com mais poder de disseminação através dos meios de comunicação de massa. Mas, continua a ser essencial para a manutenção dessa energia, fazer tudo visando abolir a escravização dos animais, e conquistar as pessoas para fazerem parte desse projeto ético, cada. Conforme dito acima, o movimento vegano no Brasil dá agora seu primeiro passo, um passo que vai além da difusão do vegetarianismo restrito à questão alimentar.

A partir desse momento, estamos juntos no projeto de remover da consciência humana todo e qualquer traço antropocêntrico que evoque animais como objetos de propriedade e humanos como seus senhores. Tirando-nos do lugar de senhores, tiramos os animais do lugar que os torna vulneráveis à hostilidade, desprezo e destruição, nos moldes do padrão cultural e moral animalizado.

Desafios do modo de vida vegano

1. A paz e não-violência para os animais é o objetivo final buscado pelo vegano e vegana. Qualquer benefício pessoal que possa resultar dessa nova forma de viver é consequência da atitude vegana, não sua finalidade.

2. A justiça social e ambiental são meios para que se alcance a paz e não-violência para todos os seres vivos. A defesa da natureza e sua preservação implica no cuidado atencioso de todas as formas de vida, e na abstenção de tudo o que implica escravização de animais.

3. Os direitos fundamentais animais precisam ser defendidos com a mesma tenacidade com a qual se defendem os humanos.

4. A saúde humana precisa ser assegurada sem a exploração de animais e sua submissão a experimentos.

5. A higiene, limpeza e beleza humanas não podem ser obtidas às custas da vida, do bem-estar e da desfiguração de animais.

6. A pele e a preservação da intimidade do corpo humano não devem ser protegidas às custas da tortura e morte de quaisquer animais.

7. Os nutrientes para o organismo humano devem ser assegurados por alimentos estritamente vegetais, descartando-se a hipótese de usar animais para prover matéria alimentar humana.

8. Da mente humana devem-se erradicar as ideias, conceitos e argumentos que justificam e fomentam o uso de animais. Se não se usa matéria animal para comer e vestir, também não se a usa para falar.

9. Os produtos à venda no mercado mundial devem ser desmontados em sua composição, para que se possa ter ciência dos ingredientes que compõem a alimentação, o vestuário, adornos, cosméticos, material de limpeza, higiene, e todos os produtos da indústria química, das tintas aos componentes high tech, do lazer aos esportes.

10. Aos jovens se deve dizer a verdade sobre a exploração e escravização dos animais. Dos mais velhos se deve cobrar a indiferença em relação ao fato de terem se deixado levar pela propaganda no que diz respeito à melhor forma de prover as necessidades da família.

11. À tradição alimentar e moral animalizada devemos dar um adeus. Desassinar o contrato de expropriação da vida animal é nosso desafio.

12. Dos governantes não há o que esperar na defesa dos direitos fundamentais dos animais, pois a maior parte deles é eleita pelo agronegócio. Via de regra, todo governo é movido pelo capital. Quando se trata de atender à vida em desgraça, especialmente se a desgraça afeta milhões de indivíduos, os governos não sabem o que fazer. Isso vale para a desgraça dos milhões de humanos abatidos por forças às quais não podem fazer frente, tanto quanto para a de bilhões de animais abatidos por forças igualmente avassaladoras.

13. Para tornar-se vegano num mundo animalizado são necessários todos os anos restantes de nossas vidas. Quando nos damos conta de que algum produto ou serviço é oferecido às custas da escravização ou morte de animais, tal produto ou serviço precisa ser dispensado para sempre.

14. O dever positivo direto de respeito aos direitos animais não nos autoriza a negociar unilateralmente nosso padrão de vida contra o direito deles de terem sua vida boa.

15. Ser vegano não é algo estático, de fato não é sequer um estado de ser. É um movimento contínuo, uma luta contínua, não contra alvos externos, mas contra alvos internos. É uma maneira de passar a limpo os arquivos mentais que nos conduzem intuitivamente em nossas escolhas diárias. Ser vegano implica em abrir mão das intuições morais herdadas da tradição e pôr no lugar delas um princípio ético do qual não se abre mão na hora de comer, de ir para a cama, de divertir-se e de instruir-se.

16. Surpresas estão reservadas para os que se tornam veganos. Por detrás de cada dobra de tecido alimentar ou do vestuário, de cada item ou componente dos objetos de uso diário esconde-se a história da exploração, sofrimento e morte de animais não-humanos. Ser vegano é ter disposição para examinar tais pregas e alisá-las uma a uma. Enquanto já nos despregamos de dez ou quinze itens que antes constituíam nosso consumo diário, há quem sequer tenha se despregado de um ou dois deles, carne e laticínios, por exemplo.

17. Vivendo no mesmo plano terrestre dos outros humanos e tendo sido formatados na mesma matriz cognitiva e moral deles, precisamos aprender a olhar para o que eles ainda não fazem, como se fôssemos nós quem ainda não houvéssemos feito coisa alguma. Em vez de apontar para o outro, precisamos apontar para nossas práticas. Se somos coerentes, outras pessoas farão dela um espelho. Se fracassamos, quem mais tem a perder com nosso fracasso são os animais. É preciso abolir a ética animalizada antropocêntrica e em seu lugar construir um modo de vida com base numa ética genuinamente animalista.

Sônia T. Felipe, Doutora em Teoria Política e Filosofia Moral, pela Universidade deKonstanz, Alemanha (1991). Co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993). Ex-voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1997-2000). Autora dos livros, “Ética e Experimentação Animal – fundamentos abolicionistas” (Edufsc, 2006); “Por uma questão de princípios” (Boiteux, 2003). Co-autora de “A violência das mortes por decreto” (Edufsc, 1998), “O corpo violentado” (Edufsc, 1998),”Justiça como Eqüidade” (Insular, 1998, esgotado). Colaboradora nas coletâneas, “Instrumento Animal” (Canal 6, 2007), “Éticas e políticas ambientais” (Lisboa, 2004), “O utilitarismo em foco” (Edufsc, 2007), “Filosofia e Direitos Humanos” (Editora UFC, 2006), “Tendências da ética contemporânea” (Vozes, 2000). Autora de dezenas de artigos editados nos sítios: http://www.svb.org.br/; http://www.pensataanimal.net/; e na Revista Ethic@ (http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/). Coordena o Laboratório de Ética Prática, do Departamento de Filosofia da UFSC, é professora e pesquisadora do Programa de graduação Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Membro Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa. Coordena o Projeto de pesquisa: Feminismo ecoanimalista: contribuições para a superação da violência e discriminação especistas, revisando a literatura sobre defesa de animais e ecossistemas produzida por mulheres (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC, 2009-2011).

Fonte – Sociedade Vegana


 

GatoVerde, em defesa dos Direitos Animais