ÉTICA NA ALIMENTAÇÃO: O FIM DA INOCÊNCIA

Sônia T. Felipe*

As “sociologias da alimentação” investigam as variáveis sociais que influenciam os hábitos alimentares humanos.1 Os padrões morais ou práticas e costumes consagrados por determinada sociedade, que, via de regra, pensamos influenciar apenas nossas práticas sexuais e sociais, estão profundamente ligados à forma pela qual os humanos inventam e preservam estratégias para obter e garantir seu alimento. Pode-se dizer que a escolha da matéria que será transformada em comida e servida à mesa, em balcões de lanchonetes, cafés, embalagens para viagem, supermercados e feiras, revela a moral de determinada sociedade e a ética que rege as escolhas individuais.

Para não deixar dúvida sobre o sentido do termo “ética”, aqui empregue, é bom que seja distinguido do termo “moral”. Enquanto moral é o conjunto de “valores” preservados numa determinada cultura, podendo ser, portanto, relativa à uma cultura e não a outras, ética é a determinação de fundamentar a ação em bases não relativistas. O que é certo ou errado fazer, da perspectiva ética, não muda de cultura para cultura, de região para região, de classe para classe, sexo para sexo, religião para religião, a menos que circunstâncias prementes coloquem os humanos em condições tais que seus atos de sobrevivência não possam mais ser considerados atos livres. Cada uma das influências morais tem seu próprio código moral. Mas, quando falamos de ética na alimentação, estamos falando do projeto humano de buscar um princípio moral não relativo, aplicável à ação de comer, que possa ser aceito como válido por indivíduos formados moralmente em diferentes padrões culturais.

A fim de não perdermos de vista o conceito de ética a partir do qual este texto foi elaborado, é bom lembrar que um princípio ético deve atender a, pelo menos, três requisitos formais: 1. Poder ser aceito por sujeitos capazes de concluir um raciocínio após examinar premissas lógicas [validade universal]; 2. Servir para orientar as decisões em casos de naturezas distintas [generalidade]; 3. Permitir seu emprego independentemente do grau de poder político, religioso e econômico do agente moral [imparcialidade]. Mas, uma ética cujos princípios atendam a essas exigências ainda continua formal. Para superar a formalidade desses critérios, a ética deve, fundamentalmente: 4. Promover o bem daqueles que são atingidos pelas decisões morais [finalidade].

Para tornar mais compreensível o que foi escrito acima, podemos fazer um experimento mental. Geralmente a ética é identificada com a postura da beneficência e da não-maleficência, com o princípio da justiça equitativa, com o princípio do respeito à autonomia individual, e assim por diante. A beneficência, a não-maleficência, a justiça e a autonomia podem ser compreendidas então como princípios éticos que servem para nos ajudar a tomar decisões de caráter moral. No entanto, embora compreendamos minimamente o que cada um desses princípios representa em nossa formatação moral, nem sempre conseguimos ver claramente de que modo nossas práticas cotidianas devem ser orientadas por eles. Se pretendemos que nossas decisões e ações sejam éticas, no sentido de que atendem às quatro exigências expostas acima, essas decisões e ações devem ser de tal ordem que possam ser reconhecidas como válidas por qualquer sujeito capaz de raciocinar de modo coerente; devem ser ações cujo sentido e razão de ser possam ser ampliados também para outras decisões de cunho moral; devem ser decisões imparciais, no sentido de que a decisão tem valor moral independentemente do sujeito que a toma; e, finalmente, não são decisões tomadas visando beneficiar o sujeito da ação moral, mas o paciente dessa ação.

Quando aplicamos os critérios éticos à nossa dieta, encontramos um vazio moral. O modo pelo qual nos alimentamos só pode ser considerado “moral” no sentido latino do termo, quer dizer, o que ingerimos é determinado pelo costume ou padrão da cultura na qual nascemos. Mas, será que as decisões e ações relativas ao ato de comer podem ser consideradas universalmente válidas? Será que temos algum princípio ético para orientar nossos atos diários ligados à ingestão de alimentos? Será que esse princípio pode ser pronunciado claramente em público? Será que o princípio que rege nossas escolhas alimentares é um princípio imparcial? Será que nossas escolhas alimentares “beneficiam” os que são diretamente afetados por elas? Examino a seguir duas das escolhas alimentares mais comuns na comunidade moral dos vegetarianos.

Ética no ato de comer

Talvez o ato de comer seja, entre tantos outros já analisados pela sociologia, a antropologia, a economia e a ciência política, o único considerado realmente natural, o que nos leva a pensar que, se comer é algo “natural”, nesta prática não cabe qualquer consideração ética. A filosofia não trata da questão do “comer”. Se é natural, então não há questão filosófica alguma para ser tratada, pensam os filósofos. Fazer uma reflexão ética implica em raciocínios que nos tiram do conforto da moralidade naturalizada. Esta admite como “valor” a ser preservado tudo o que se mantém pelo costume. Considera-se que aquilo que consegue manter-se como prática institucional em uma dada sociedade tem força e valor suficientes para continuar a ser mantido. A alimentação e as regras de ingestão, a forma como o alimento é apresentado ao comedor e a mecânica de sua produção, tudo isso é considerado “natural”. Então, concluímos, quando comemos não praticamos qualquer ato imoral.

Comer, nas sociedades industrializadas e nos grandes centros urbanos, no entanto, deixou de ser uma prática que interessa investigar apenas do ponto de vista antropológico e sociológico, isto é, com métodos meramente descritivos, destituídos de qualquer crítica e despidos de quaisquer juízos de valor.

O uso das mulheres para serviço dos homens, o sequestro dos africanos e sua venda como mercadoria para o serviço das lavouras dos brancos em toda a América, o uso e extermínio dos animais e a destruição dos ecossistemas naturais estiveram todos na mesma categoria de ações humanas, consideradas “necessárias” ao bem da “humanidade”, ao longo da história. Nossa moral tradicional nos ensina que onde há “necessidade” não há liberdade. Onde não há liberdade não há possibilidade de “juízos de valor”. Se as lavouras de algodão e cana-de-açúcar não podiam ser cultivadas senão pela mão-de-obra escravizada, então, concluíam intuitivamente os conservadores, a instituição da escravatura era necessariamente justificável do ponto de vista moral.

Seguindo a mesma lógica conservadora, os apologistas da dieta-padrão norte-americana, disseminada ao redor do planeta, entendem que, se a demanda por produtos de origem animal não desaparece, então a instituição da produção de animais para o abate ou derivados é moralmente justificável. Nos dois casos, a escravização de humanos e a escravização de animais não-humanos, a “necessidade” é considerada um argumento suficiente para justificar moralmente a instituição. Mas, o que ninguém investiga são as causas de tais “necessidades”.

A inocência moral do costume de escravizar africanos nas lavouras e negócios euro-americanos acabou na segunda metade do século XIX. Do mesmo modo, acabou a inocência no uso do trabalho das mulheres para agregar poder econômico, moral e político aos homens. Nossa era é a do fim da inocência moral no ato de comer animais e seus derivados. Embora continue a ser “natural” comer, já não há nada de natural no conteúdo de qualquer refeição que resulta de processamento industrial. O argumento de que a abolição da moral onívora é uma utopia, porque todos estamos enraizados em práticas cotidianas que a sustentam, segue a mesma lógica de defesa da escravização de africanos e exploração das mulheres.

Há um século e meio atrás também dizia-se que a escravidão não poderia ser abolida porque representaria a ruína da economia e da política internacional. Na verdade, escreve Fox, “[h]ouve um tempo não muito longe, no entanto, no qual muitas pessoas não apenas pensavam que a escravidão fosse algo justificável e mesmo sancionada por Deus, e estavam seguras de que elas – e a sociedade – não poderiam sobreviver sem ela. O que isso significava era que seu estilo de vida, bem-estar econômico, e posição de poder e privilégio não poderiam sobreviver sem ela, o que é algo bem diferente. […] Mas ninguém afirma que a utilidade social da escravidão foi maior no tempo em que existiu. […] Quando todos os benefícios e danos relevantes são levados em conta, fica evidente que a escravidão era uma instituição viciada e irremediavelmente cruel. […] Mas somente há pouco tempo alguns ousaram sugerir que os animais são rotineiramente tratados como escravos e que há nisso um grau comparável ao da escravização humana.”2

Nos últimos quarenta anos a dieta humana sofreu transformações em todos os seus aspectos: de regional passou a ser global. Com essas transformações deixou de ser típico de uma região comer certos alimentos. Também deixou de ser típico de cada região prepará-los de modo peculiar. Processados, todos os alimentos passaram a ser oferecidos a todos os olhos e estômagos, disseminando com isso as consequências da padronização que o processamento de alimentos sofre nesse terceiro milênio da civilização judaico-cristã.

Se a quarta exigência da ética, sua finalidade, é buscar o benefício para aqueles que são afetados por nossas ações, as práticas humanas de alimentação devem passar também pelo crivo da ética, a exemplo das práticas econômicas e políticas que antes garantiam a um grupo privilegiado os benefícios de seus empreendimentos escravagistas e machistas, ao mesmo tempo em que para os afetados por esses empreendimentos nada se oferecia. Comer deixou de ser simplesmente um ato imposto por uma “necessidade natural”. Na verdade, o que se come, hoje, passou a ser imposto pelos “interesses industriais”.

O ato de comer perde a aura de inocência no momento em que os humanos têm à sua disposição as mais diversificadas fontes naturais de nutrientes vegetais, mas insistem em encher seu prato de pedaços de carcaças que constituíram organismos de indivíduos animais que viveram uma experiência particular de vida. Não há inocência alguma no ato de comer, quando o buffet do qual nos servimos oferece aos comedores uma variedade de preparados nos quais os produtos derivados do abate intensivo de animais e os subprodutos dos restos desse abate são apresentados lado a lado com produtos não derivados de animais. A inocência acaba quando, mesmo tendo diante de si alimentos nutrientes de origem vegetal, o comedor “escolhe” pôr em seu prato porções derivadas de animais. “Humanos têm a capacidade de pensar e sentir eticamente [escreve Michael Allen Fox]. Dessa perspectiva, não somos animais que não podem agir a não ser do modo ditado pela natureza; somos seres que podem deliberar e fazer escolhas. Apelar para nosso lugar “natural” na cadeia alimentar, ou para a “naturalidade” de comer animais, dado que rotineiramente eles se comem uns aos outros, é abdicar precisamente da responsabilidade de raciocinar e assumir as consequências de nossas ações.”4

A inocência perdida

Ovos, leite, laticínios, carnes e outros alimentos ou produtos de origem animal, tais quais a gelatina e o mel, por exemplo, são considerados alimentos ricos em proteínas, cálcio e minerais, e declarados imprescindíveis à saúde do organismo humano. Ao impor o padrão alimentar que atende largamente aos interesses do agronegócio, dominante ao redor do planeta desde a década de 70 do século XX, a moralidade na qual fomos formatados nos forçou à “inocência” em nossas escolhas dietéticas. Jamais, em qualquer programa de TV que aborde a questão da alimentação e saúde, são apresentadas ao telespectador as cenas que estão no ar sem serem transmitidas ao vivo em todos os galpões de confinamento completo de aves, suínos e bovinos, e nos abatedouros que os degolam e esquartejam em ritmo industrial, mecanizado.

Essa pretendida inocência no ato de escolher o que se coloca no prato não é típica apenas dos onívoros. Considerando-se a classificação dos tipos de escolha alimentar praticados hoje ao redor do planeta, feita em The New Vegetarians, de autoria de Paul R. Amato e Sonia A. Partridge, encontramos igual resistência moral naqueles que se dizem vegetarianos, mas incluem em sua dieta produtos de origem animal, tais quais, leite, ovos, mel, gelatina, etc. Na lista de vegetarianos os autores citam: “(1) Ovo-lacto-vegetarianos, consomem ovos e laticínios, menos carne; (2) lacto-vegetarianos, consomem laticínios, mas não ovos e carnes; (3) ovo-vegetarianos, comem ovos mas não laticínios e carnes; (4) veganos, não comem carnes, laticínios e ovos (e geralmente também não usam mel); (5) vegetarianos macrobióticos, vivem de grãos integrais, vegetais marinhos e do solo, leguminosas e missô (uma pasta altamente proteica feita de grãos e soja fermentados); (6) higienistas naturalistas, comem alimentos vegetais, combinam alimentos, e praticam jejuns periódicos; (7) crudívoros, comem apenas alimentos crus de origem vegetal; (8) frugívoros, consomem frutas, nozes, sementes e certos vegetais; e (9) semivegetarianos, incluem pequenas porções de peixe e ou frango em sua dieta.”4

Para que melhor possam compreender porque acima escrevi que não há uma diferença fundamental entre os onívoros e os demais comedores que incluem produtos de origem animal em sua dieta, especialmente leite e ovos, gostaria de lembrar que a questão ética implicada na consideração da dieta inclui em todos os casos a morte não justificada de animais. Ao contrário do que os ovo-lacto-vegetarianos pensam, comer produtos derivados do leite e comer ovos adquiridos da rede de comércio de alimentos implica em torturar e matar animais, e em número maior do que geralmente se supõe.

Por que não se pode ser inocente ao “comer” ovos?

Animais de quaisquer espécies nascem em liberdade física, quer dizer, o nascimento representa o corte do suprimento recebido ao longo da gestação, não importa se esta se dá num útero, ou num ovo. Podemos definir um animal como o tipo de ser vivo que ao nascer tem sua fonte de provimento suspensa, e passa a depender do provimento que deve chegar do ambiente natural e social que o cerca. Para viver, todo animal precisa aprender a identificar a matéria que contém nutrientes necessários ao seu desenvolvimento e sustento, e reconhecer a matéria que não os contém. Animais, portanto, são distintos dos vegetais, por terem de prover seus organismos num ambiente aberto, o que requer liberdade física. Isso tem seu lado bom, e seu risco. Depender de nutrientes exteriores mas não colados ao corpo, força o animal a procurá-los. Tal procura é parte do processo de construção da mente específica do animal, seja ele humano, ou, não-humano. Se o animal for privado da liberdade de “mover-se para autoprover-se”, destruiu-se o que o caracterizaria. Tudo o que se fizer a ele daí por diante já não o ajudará a ser um animal “feliz”. Por isso, leis bem-estaristas de proteção aos animais criados em confinamento completo são tão hipócritas quanto o é a lei do “abate humanitário”.

Galinhas não fogem à regra da condição de serem animais. Mas as que são forçadas a nascer para servir à indústria dos ovos, têm sua liberdade física completamente atrofiada pelo processo industrial de produção ao qual estão submetidas. Menos de um dia após nascerem, os pintainhos são jogados numa esteira rolante para a “escolha” dos machos, que são descartados. O descarte pode ser feito jogando-se todos num saco plástico, que ao encher será fechado, levando-os à morte por sufocação, ou numa máquina de triturar, vivos. Muitos podem estar perguntando: por que os matam e não os criam para abate? Porque os machos que nascem dos ovos selecionados para a produção de galinhas “poedeiras” não prestam para a indústria da carne do frango. Eles demoram muito para crescer. Com base nos dados de 2002, pode-se estimar que, só nos Estados Unidos, são mortos pela indústria de ovos algo em torno de 300 milhões de pintainhos machos por ano.5

A agonia das aves produzidas na indústria de ovos não acaba com o descarte brutal dos pintainhos machos no primeiro dia após o nascimento. Neste dia começa o tormento dos pintainhos fêmeas. Este tormento durará até dois anos e meio, em média. Para começar, todas são levadas à máquina que corta um terço de seu bico, e cauteriza o toco que ali resta. A lâmina em brasa faz o serviço, conduzida por um trabalhador que não tem autorização da empresa para anestesiar o bico do pintainho fêmea. A parte do bico cortada é completamente enervada. Sem anestesia, o processo doloroso pode prorrogar-se de 5 a 6 semanas, conforme o descreve Erik Marcus.6 Os animais também não recebem analgesia após o procedimento.

A razão da debicagem é o confinamento ao qual essas fêmeas serão condenadas para o resto de suas vidas. Devido ao grande número de galinhas alojadas num só galpão, e ao fato de que estarão confinadas num espaço que não chega ao de uma caixa pequena de sapatos, elas estressam de tal modo que passam a bicar tudo o que estiver ao seu alcance. Na indústria de ovos não há atendimento individual às aves. Se muitas forem bicadas formar-se-ão ferimentos que as levarão a infecções e à morte. Não recebendo qualquer tratamento veterinário personalizado, aves bicadas morrem aos montes.

Aos 120 dias de vida as pequenas aves destinadas ao processo de postura são levadas para o confinamento definitivo, do qual sairão mortas por exaustão, ou destinadas ao abate, quando estiverem “gastas”. O espaço que recebem nos galpões de confinamento não permite sequer que possam esticar as asas. E assim, sem qualquer possibilidade de exercício físico, são forçadas a viverem mais 800 dias, sem jamais terem ciscado a terra, colhido insetos e minhocas, comido areia, ou formado grupos sociais e vivido nesses grupos de forma prazerosa, uma necessidade específica das galinhas.

O piso aramado das gaiolas nas quais as galinhas são alojadas tem o formato de grade, para permitir que os excrementos caiam. Os arames causam ferimentos nos pés. Quando as feridas cicatrizam, o tecido se forma envolvendo o arame. Com os pés aderidos ao arame, as galinhas são impedidas de se levantarem ou de trocarem de posição. Quando o tecido se rompe com o peso do corpo e o esforço do animal para livrar-se da algema, os pés caem no vão aramado. Se a galinha não consegue mais voltar à posição usual, ela morre sufocada, de fome ou de sede, pois não consegue alcançar os servidouros de água e comida.7

O fato de serem forçadas a pôr ovos ininterruptamente leva a uma perda enorme de cálcio. A consequência mais dolorosa é a fratura óssea. Dado que as galinhas não recebem tratamento médico individualizado, tais fraturas são a causa de pelo menos 30% das mortes de “poedeiras”. Esse é o percentual de galinhas com fratura óssea que chegam ao local do abate.8

A agonia das galinhas poedeiras não tem fim. Devido ao esforço diário para expelir os ovos, um dos males mais dolorosos e fatais para elas é o prolapso do útero. Ao sair, o ovo acaba puxando junto o útero, que não tem como voltar para seu lugar, a não ser com ajuda médica. Mas, para restabelecer a posição normal, o procedimento pode levar até 1 hora. Dado que o acidente ocorre em grande número de “poedeiras”, os custos do pagamento de 1 hora de trabalho por animal, para o veterinário colocar o útero manualmente de volta em seu lugar, tornam o negócio inviável. As galinhas que sofrem prolapso do útero morrem em agonia. Essa agonia torna-se ainda maior quando as outras começam a bicar e devorar o útero prolapsado. Somente nos Estados Unidos morrem mais de 2 milhões de galinhas por ano, por prolapso não tratado. A morte em agonia dura, no mínimo, dois dias.

As galinhas que não sofrem ferimentos nos pés por causa da grade de arame sobre a qual têm que ficar em pé, as que não sofrem de fraturas devido à descalcificação óssea, e as que não morrem em agonia por prolapso do útero, seguem em vida forçadas pelas doses maciças de ração e exposição à luz artificial, pondo ovos ininterruptamente. Quando sua produtividade diminui, e o empresário não pode baixar o número de ovos oferecidos ao mercado por dia, elas são enviadas para o abatedouro, virando alimentos processados (sopas, pós, e embutidos). Se o empresário fornece para consumidores com alguma variação na demanda, as “poedeiras” passam por um “choco” forçado, o que as leva a renovar a carga hormonal e voltar aos níveis de produtividade anteriores. “Durante o choco forçado, descreve Marcus, as galinhas não recebem qualquer alimento por sete a quatorze dias. A luz é diminuída para imitar as condições do inverno, estressando o corpo por antecipação da primavera. Muitas semanas após o choco forçado a produtividade volta aos níveis lucrativos normais. Mas o choco forçado tem um custo alto. Mata as aves mais fracas, e sem dúvida causa a todas, sofrimento – durante o choco elas perdem até 30% de seu peso corporal.”9

Dado que o valor comercial das galinhas “gastas” é baixíssimo, há produtores que sequer se dão ao trabalho de as vender para abatedouros. Nos Estados Unidos há produtores que as colocam simplesmente em contêineres e os enterram, sem antes matá-las. Em San Diego, Califórnia, um produtor foi denunciado porque os vizinhos o viram usando o triturador de madeira para triturar as galinhas “gastas” vivas. No inquérito, o produtor reconheceu ter praticado isso com 30 mil galinhas. O médico veterinário, Dr. Gregg Cutler, membro do comitê de bem-estar animal da American Veterinary Medical Association, embora tenha declarado não haver autorizado os produtores a usarem o triturador de madeira para dar fim às galinhas “gastas”, afirmou concordar com tal método de extermínio. Há produtores que se livram das galinhas em lixões.10 Comer ovos, portanto, não é uma forma “mais ética” de cuidar de sua dieta. Por trás de um ovo estão todas as cenas descritas acima, e outras que não dá tempo para descrever aqui.

Mas, pode estar pensando quem é ovo-vegetariano, o que haveria de errado em comer ovos de galinhas criadas soltas nas fazendas de produção orgânica?

As galinhas produzidas nas fazendas orgânicas são irmãs dos pintainhos machos mortos no primeiro dia de vida. Analogamente ao que se passa com as galinhas confinadas em gaiolas para a postura de ovos, também as galinhas criadas soltas nas fazendas orgânicas são enviadas para o matadouro quando não põem ovos na quantidade suficiente para manter o negócios dos ovos rentável ao produtor. Se não forem mandadas para a morte, essas galinhas orgânicas podem viver até oito ou nove anos, ao contrário das que são abatidas ao fim do período de postura. Mas, para que suas vidas não implicassem dor e sofrimento, e para que suas mortes não fossem uma execução sumária, as galinhas criadas soltas deveriam receber cuidados médicos, ter espaço para viverem bem, seguindo os padrões do bem próprio da espécie galinácea, e alimentação nutritiva. Os custos desses três cuidados tornariam o ovo da galinha orgânica quatro vezes mais caro a unidade, segundo Marcus.11 Singer chega a referir-se a sete vezes mais caro o preço de um ovo de galinha orgânica, do que o de galinha confinada.12

Ao final da vida de uma galinácea usada para pôr ovos, teriam sido consumidos aproximadamente 500 Kg de grãos,13 o que tem seu equivalente em excrementos acumulados, contaminação do solo, das águas de superfície e do lençol freático, do ar e multiplicação dos microorganismos, bactérias e viroses fomentada com a densidade populacional galinácea. O espaço para manter vivas todas as galinhas que deixam de botar ovos de forma eficiente teria que ser também, pelo menos, quatro vezes maior do que o necessário para manter vivas as galinhas “ativas”.

Cientes dos custos altíssimos que a produção orgânica e ética de ovos representa, os produtores não chegam a adotar o princípio ético da não-maleficência e da beneficência em relação à vida das galinhas usadas para a fabricação de ovos. Nos Estados Unidos, afirma Singer, não há produtores de ovos orgânicos genuínos. Lá, chegou-se apenas ao meio do caminho da abolição. O que se faz é aumentar o espaço das gaiolas, ou confinar as poedeiras em ambientes fechados mais amplos. Raras são as que podem ciscar fora do galpão nos meses da primavera.14 De qualquer modo, todas são enviadas à morte ao fim do ciclo produtivo. Comer ovos é, portanto, ser favorável à matança das galinhas que os põem.

Ao mesmo tempo em que parecem mais éticos do que os produtores de ovos que mantém as galinhas confinadas em gaiolas do tamanho da caixa de um sapato, os produtores orgânicos seguem os mesmos padrões capitalistas de produção, pois os consumidores de ovos de galinhas soltas não se incomodam com o fato de que as galinhas que põem ovos para eles são mortas como as demais ao final de seu ciclo de postura “eficiente”. Comer ovos, portanto, não pode ser considerado mais ético do que comer carne ou seus derivados. Dor, sofrimento e morte compõem o cenário de cada ovo, apesar de sua aparência tão inocente e lisinha.

Por que não é inocente “comer” leite e laticínios?

Analogamente ao que ocorre com o consumo “inocente” de ovos, o consumo de leite e derivados também não deixa margem alguma para a “inocência” na escolha dietética. É bom lembrar, logo de início, que “todas” as vacas “leiteiras” são abatidas, sem dó nem piedade. O que as diferencia das condenadas ao “corte” não é que elas “pelo menos, podem viver”, e sim que a vida dolorosa à qual são condenadas dura muito mais tempo do que a vida à qual são condenados os indivíduos destinados à indústria da “carne”.

Grande parte das vacas produzidas para fornecer leite pode viver, pelo menos uma parte de suas vidas, ao ar livre, pastando. Mas isso não implica concluir que suas vidas são boas, ou que tomar o leite tirado delas não tem qualquer implicação ética relevante. As vacas que vivem em lugares muito quentes e secos são geralmente mantidas em confinamento, pois não há grama que as possa alimentar convenientemente. Nesse caso, elas são alimentadas mecanicamente por aparelhos que despejam ração e servem água. Não há para o animal qualquer chance de escolher o que vai comer. Quando confinadas em galpões, geralmente estes recebem um número muito maior do que o conveniente para garantir o bem-estar físico do animal e permitir que forme seu grupo social ou estabeleça a hierarquia social necessária ao seu bem-estar emocional. As vacas são presas por uma coleira e assim mantidas, com as cabeças próximas ao comedouro. Elas não têm liberdade de mover-se, trocar de lugar, escolher o melhor ângulo para receber a comida.

As vacas, escrevem Singer e Mason, “possuem intensa vida emocional. Elas formam laços de amizade com duas, três, quatro ou mais vacas e, se puderem, passam a maior parte do tempo juntas, muitas vezes lambendo e cuidando umas das outras. Por outro lado, elas também podem desenvolver antipatia por outras vacas e guardar ressentimento por meses ou até anos.15

A vaca destinada à produção de leite vive grávida 9 de cada 12 meses. Em média, tiram-se 20 litros de leite por dia de cada uma dessas vacas. “Para aumentar ainda mais a produção do leite [escrevem Singer e Mason], [há produtores que] aplicam injeções, duas vezes por mês, de BST, ou somatotrofina bovina, um hormônio de crescimento geneticamente desenvolvido. O BST foi proibido no Canadá e na União Européia em função das preocupações com a saúde e o bem-estar das vacas leiteiras, mas é amplamente utilizado nos Estados Unidos. Ele aumenta a produção de leite em cerca de 10%, mas o local da injeção pode ficar inchado e sensível. O BST também pode aumentar problemas de mastite, uma infecção mamária dolorosa que aflige cerca de uma em cada seis vacas leiteiras.16 Os dois estresses acumulados e praticamente ininterruptos, gravidez e lactação, esgotam o metabolismo das vacas. Somente nos Estados Unidos são abatidas anualmente mais de um milhão de vacas em razão de sua fraqueza para continuar a produzir o leite ou manter mais uma gestação. Quem bebe leite, come iogurte e queijos, deve lembrar-se dessas mortes também, não apenas da morte da própria vaca que será abatida depois de ser explorada por dois ou três anos pela extração de seu leite. Somadas às mortes das mães, é preciso contar os 9% de bezerros que morrem antes do “desmame”, por terem sido gestados em condições de extremo cansaço e fraqueza das mães. Essas mortes ocorrem no primeiro ou segundo dia do nascimento.17

Os bezerros, na indústria do leite, são amamentados apenas por dois dias, enquanto o leite é colostro.18 A finalidade para a qual nascem não é para que possam gozar suas vidas, mas causar o disparo hormonal no organismo de suas mães, que as leva à produção de leite. Nascidos, os bezerros que sobrevivem ao desmame no segundo dia de vida, quando acaba o colostro, ou são abatidos, ou enviados para a indústria da vitela, que os manterá num caixote sem luz solar, sem espaço para que possam pular, mover-se ou prover-se, e sem alimentação nutritiva, pois o objetivo é que sua carne fique pálida e macia, ao gosto dos comedores humanos.

Por isso, quem toma leite, come iogurte e queijo deve ter em mente a morte das vacas por exaustão, o abate delas quando não são mais eficientes na produção de leite, e a morte de todos os seus filhos, seja por fraqueza, seja após sua sobrevida nos caixotes escuros da indústria de vitela. Afirmar, portanto, que consumir leite não implica em “matar” ou “torturar” animais é uma impropriedade. Implica, sim. Se queremos ser éticos em nossa dieta, é preciso conhecer a realidade da produção de leite.

Cada vaca é usada para gestar, no mínimo, três vezes. Nove meses de gestação, três meses de pausa e nova inseminação artificial. Cada parto representa para a mãe a dor e o sofrimento de ver seu filho arrancado dela no primeiro, segundo ou terceiro dia de vida. Markus sugere que “o trauma causado por essas separações é uma razão pela qual algumas vacas acabam sendo mandadas para o matadouro mais cedo. Na maior parte dos casos, as vacas são levadas para o abate, ou porque ficaram doentes, ou porque a quantidade de leite caiu abaixo dos níveis tolerados pela margem de lucro dos produtores. Mas, em pelo menos 1% dos casos, as vacas são mortas por perderem sua doce disposição psicológica, por tornarem-se perigosas. Quando levadas para a ordenha mecânica, algumas dão coices nos trabalhadores que operam as máquinas de tirar leite. Uma vaca leiteira pode pesar meia tonelada, e seu coice pode ser mortal. As vacas que repetidamente tentam escoicear os trabalhadores são enviadas para a morte, pois são perigosas, não importando quanto leite produzem.”19

O tempo médio de vida de uma vaca, escrevem Singer e Mason, pode ser de até 20 anos, mas as destinadas a produzir leite vivem apenas de 5 a 7 anos. Elas são abatidas quando cai a produção do leite. Cada vez que dão à luz, passam pela mesma agonia de terem seus filhos levados embora nos três primeiros dias de vida. A mãe fareja os resíduos de sangue e placenta que lambeu do filhote, e muge por dias ou mesmo semanas. Muitas sofrem este luto a ponto de entrarem em depressão.20

Além do sofrimento pelo qual passam as vacas leiteiras ao terem seus filhos tirados dela e ao terem que se submeter a uma nova gestação passados três meses após encerrada a anterior, o consumo de leite também responde pelo alto volume de poluição aérea nas regiões nas quais as vacas são criadas. Na digestão da dieta não natural à qual são forçadas para produzirem mais leite, seu sistema digestivo produz uma imensa quantidade de gás metano, responsável pelo aquecimento global.21 Os dejetos depositados a céu aberto são poluidores do ar, do solo e das águas, além de contaminarem o lençol freático da região leiteira. Tudo isso torna o consumo de leite anti-ético.

Por que não é inocente “comer” vitela?

A indústria da vitela é um subproduto da indústria do leite. Quem consome leite tem responsabilidade pela separação brutal de mães e filhos após o parto, produção, comercialização, confinamento, morte e consumo de bezerros usados pela indústria de vitela. Se não houvesse inseminação artificial para garantir a oferta de leite, não haveriam bezerros sofrendo por quatro a seis meses após o nascimento.

Segundo Singer e Mason, “os bezerros são separados da mãe logo após o nascimento, […] mantidos anêmicos, não receb[em] alimentos fibrosos, não t[êm] possibilidade de exercitar-se e [são] mantidos em baias tão estreitas que não consegu[em] se virar.” [EA, p. 2]. O bezerro destinado ao abate para fornecimento de “carne de vitela” vive apenas 16 semanas. Mas, este tempo tão curto de vida não representa para ele menor agonia. O animal é forçado a viver na semi-escuridão, numa baia tão estreita que ele jamais pode girar seu corpo. Além do mais, conforme o descrevem Singer e Mason, o bezerro fica amarrado pelo pescoço. Sem o afeto da mãe, e impedido de fazer vínculos com outros de sua espécie, o animal também não pode alimentar-se de forma específica. Recebe uma “mistura líquida de produtos de leite em pó, amido, gordura, açúcar, antibióticos e outros aditivos. Sua dieta é deliberadamente tão baixa em ferro que ele desenvolve uma anemia subclínica.”22 Essa carne tem um tom rosado e é tão macia que pode ser cortada sem o uso de facas. Mas, para agradar à vista e ao palato do comedor humano, “o bezerro não terá acesso à palha ou feno para o leito – se tivesse, seu desejo natural por fibras e por ter algo para mastigar o induziria a comer a palha e o feno e, como eles contêm ferro, também isso alteraria a cor de sua carne. As baias de madeira e a corda no pescoço são parte do mesmo plano. Se a baia fosse de metal, ele a lamberia e, se pudesse se virar, lamberia a própria urina – novamente, para satisfazer sua necessidade de ferro.”23

Ética para com os animais, o ambiente físico natural e para consigo mesmo

Ao abandonar a moral do comedor tradicional, o sujeito pode temer ameaçar seu bem próprio em nome do bem-estar dos animais e do planeta, este ameaçado, por sua vez, pelo consumo de carne, ovos e laticínios. O interesse próprio acaba por configurar um pseudo-dilema moral: como o que estou acostumado a comer, ou deixo de comer o de costume e busco nutrientes em outras fontes de origem apenas vegetal? Vou adoecer? Vou perder a força mental, a resistência física e a energia sexual? Vou gastar mais dinheiro com comida do que se comprasse alimentos de origem animal? Confrontado pela primeira vez com informações que não lhe permite mais manter a própria inocência em relação a seu padrão dietético, o comedor padronizado tradicional fica assombrado com tais questões.

Donna Maurer aponta duas formas complementares na argumentação antropocêntrica em favor do vegetarianismo: uma, enfatiza a autoridade de quem decide abolir o consumo de produtos de origem animal, e os princípios em nome dos quais os vegetarianos passam a viver: liberdade, escolha e não coerção, por um lado, e reprovação de ações injustas e discriminatórias, por outro. Outra, enfatiza os riscos e ameaças à saúde e bem-estar humanos, o equilíbrio ecológico e o suprimento adequado de comida.24 Mas, o vegetariano pode superar o antropocentrismo em sua argumentação e modo de comer.

Michael Allen Fox, por sua vez, lista argumentos que sustentam a decisão de tornar-se vegetariano, que vão desde a própria saúde até o aperfeiçoamento espiritual e religioso, a saber:

“1. Saúde

2. Sofrimento e morte dos animais

3. Preocupação moral imparcial e desinteressada

4. Preocupação ambiental

5. Manipulação da natureza

6. Fome mundial e injustiça social

7. Formas interconectadas de opressão

8. Compaixão e similitude entre espécies

9. Ahimsa ou não-violência universal

10. Argumentos espirituais e religiosos”.25

De qualquer modo, conforme Fox bem o reconhece, quase todos os argumentos estão fundados em uma nova concepção do estatuto moral de animais não-humanos na comunidade de sujeitos morais. “Da perspectiva moral [escreve Fox], isso implica que aqueles que desejam defender o consumo de carne devem demonstrar que não estão fazendo nada de errado ou são indiferentes ao sofrimento e dano, ou terão de concordar que tal sofrimento e danos devem ser mitigados ou eliminados de modo convincente.”26 Devido à dificuldade em argumentar em favor de qualquer dessas duas direções, temos um caso em que a responsabilidade pela argumentação cabe aos que defendem o consumo de carne, não o contrário. Mas, devido ao fato de que a maioria das pessoas não tem oportunidade de ouvir os argumentos contrários ao consumo de carne, os vegetarianos não podem se dar por satisfeitos e esperar o fracasso dos comedores de carne em justificar o que estão fazendo. Se há argumentos racionais convincentes que podem ajudar as pessoas a optarem pelo consumo exclusivo de alimentos de origem vegetal, os veganos não podem furtar-se à responsabilidade moral de apresentarem publicamente esses argumentos. Omitir-se não é a melhor estratégia, nem do ponto de vista político da necessidade que os animais ora têm de serem defendidos da agressão humana, nem do ponto de vista moral, considerando-se que a distinção entre animais humanos e não-humanos é justamente a liberdade para fazer e deixar de fazer o bem e o mal. Discutir publicamente os fundamentos da escolha vegana possibilita que os onívoros e os ovo-lacto-vegetarianos possam pensar um pouco a respeito de seus hábitos de consumo alimentar.

A grande barreira a ser derrubada na tradição moral alimentar é a que associa comer carne animal à evidência de superioridade humana. Seguindo a hipótese de Nick Fiddes, Michael Allen Fox admite: “Ao matar animais por causa de sua carne, tornamos sua subserviência e morte instrumental para nosso próprio desenvolvimento; nós reafirmamos nossa exigência de sermos a espécie dominante ao mesmo tempo em que satisfazemos nossa necessidade básica de comida. Pelo menos até certo ponto, também afirmamos o direito de exercer poder sobre a vida e a morte e de aniquilar o estranho outro.”27

Concluindo

Se levamos a sério os critérios que definem um princípio ético, não podemos admitir que o estilo de nossos hábitos de comedores implique em inflição de agonia e morte a bilhões de animais a cada ano. Matar só é admissível se for a única saída para salvar a própria vida. Banalizar a vida de seres de outras espécies, como se para cada um deles não fosse valioso estar vivo, é admitir que a própria vida possa ser banalizada por outros, que igualmente desdenham o valor que o fato de estar vivo possa ter para nós. A ética exige coerência entre o que se deseja que os outros respeitem, quando se trata de garantir nossa vida, integridade física, emocional e social, e o que devemos reciprocamente ao outro, ainda que esse outro não tenha o mesmo formato e aparência de um ser da nossa espécie. A imparcialidade, por um lado, não admite que tenhamos pesos e medidas diferentes para avaliar o que tem valor igual. Por outro lado, ela não admite que obtenhamos benefícios e vantagens pessoais às custas da dor, sofrimento e morte de outros. Não há nada mais anti-ético do que buscar o próprio prazer e bem-estar às custas do sacrifício do prazer e do bem-estar alheio. O que fazemos aos animais, quando comemos ou consumimos produtos fabricados a partir de seus organismos, não pode ser considerado ético. O princípio da não-maleficência nos proíbe de julgar éticas as ações que separam o benefício de uns, dos custos dolorosos que acabam sendo jogados sobre outros. O respeito à igualdade da condição de sermos todos os vivos vulneráveis à dor e à morte, à angústia e ao sofrimento, é a única saída para o aprimoramento de nosso sentido ético, especialmente à mesa.

Muito obrigada, pela honra do convite.

Sônia. T. Felipe

Palestra proferida no Encontro Temático da SVB-Brasília, 16 e 17 de agosto de 2008.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOX, Michael Allen. Deep Vegetarianism. Philadelphia: Temple University Press, 1999.

MARCUS, Erik. Meat Market: Animals, Ethics & Money. Boston, Ma: Bio Press, 2005.

POLLAN, Michael. O Dilema do Onívoro: Uma história natural de quatro refeições. RJ. Intrínseca, 2007.

POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da Alimentação. Florianópolis: Edufsc, 2006.

SINGER, Peter; MASON, Jim. A Ética da Alimentação: Como nossos hábitos alimentares influenciam o meio ambiente e o nosso bem-estar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

Brasília, 16 de agosto de 2008

NOTAS

* Este trabalho é dedicado às organizadoras do IV Congresso Temático da SVB e aos seus participantes, realizado em 16 e 17 de agosto de 2008. Agradeço ao Engenheiro [vegano] Dr. Arno Bollmann a leitura atenta da versão preliminar deste texto, e as sugestões para que algumas passagens fossem escritas com mais clareza.

1 POULAIN, Sociologias da Alimentação, 2002.

2 FOX, Deep Vegetarianism, p. 144.

3 FOX, Deep Vegetarianism, p. 149.

4 Apud FOX, p. 55.

5 Cf. Erik MARCUS, Meat Market: Animal, Ethics and Money, p. 16.

6 Ibid., p. 17.

7 Ibid., p. 18.

8 Ibid., p. 19.

9 Ibid., p. 21.

10 SINGER, Peter; MASON, Jim. Á ética da alimentação, p. 115.

11 MARCUS, MM, p. 49-50.

12 SINGER; MASON, EA, p. 119.

13 MARCUS, MM, p. 49.

14 SINGER; MASON, EA, p. 118-119.

15 SINGER; MASON, EA, p. 60.

16 Ibid., p. 60-61.

17 MARCUS, MM, p. 35.

18 Ibid., p. 36.

19 Ibid..

20 Cf. SINGER; MASON, EA, p. 62 ss.

21 Ibid., p. 65.

22 Ibid., p. 63.

23 Ibid., p. 63 e p. 295.

24 Apud FOX, DV, p. 60.

25 Ibid., p. 61.

26 Ibid., p. 52.

27 Ibid., p. 26.

Sônia T. Felipe é doutora em Teoria Política e Filosofia Moral com pós-doutorado em Bioética-Ética Animal, co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência, ex-voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis, co-autora de ‘A violência das mortes por decreto’ (Edufsc), ‘O corpo violentado’ (Edufsc), ‘Justiça como Eqüidade’ (Insular) e ‘Por uma questão de princípios’ (Boiteux), ‘Ética e experimentação animal: argumentos abolicionistas’ (Edufsc), colaboradora nas coletâneas, ‘O utilitarismo em foco’ (Edufsc), ‘Éticas e políticas ambientais (Univ.Lisboa), ‘Filosofia e Direitos Humanos’ (Edufce), ‘Tendências da Ética Contemporânea’ (Vozes), ‘Instrumento Animal’ (Canal 6). É professora e pesquisadora dos Programas de graduação e pós-graduação em Filosofia, e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Investigadora Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Membro do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa.

Texto já publicado em http://www.pensataanimal.net

Ouça palestra de Sônia T. Felipe sobre Ética e Direitos Animais

http://www.veggietal.com.br/palestra-sonia-felipe/

GatoVerde, em defesa dos Direitos Animais